O banco da senhora Augustine
Passando pela avenida era possível ver a linha do mar
interrompida de quando em quando pelas densas folhagens do imenso e bem cuidado
jardim da orla marítima.
O sol já caia a
oeste. Era um verão muito forte naquele janeiro, mas a brisa da tarde deixava tudo
mais agradável.
Em um dos poucos
bancos vazios a senhora Augustine se acomodou. Uma multidão, como se
fossem formigas indo e vindo, caminhava
pela areia próximo a água e outra pelo calçadão protegida por enormes
amendoeiras-da-praia.
Um casal caçoava
de um homem nem velho, nem moço, que manquejava. A senhora presenciando a cena o
repudiou chamando a atenção do casal que logo se afastou sem olhar para trás.
Limpando mais
uma vez os óculos, recolocou-os, abriu um livro e começou a ler. Naquela tarde
porém, por mais que tentasse não
conseguia se compenetrar na leitura. Passava os olhos num pequeno trecho,
marcava e fechava o livro ficando a divagar por uns bons momentos. E foi assim
por quase todo o tempo em que ali permanecera sozinha.
Desde quando se
mudara para o litoral, a senhora Augustine criou o hábito de sentar-se ali no mesmo banco e sempre à tardinha. Isso
praticamente todos os dias em que o tempo favorecesse. Os amigos até brincavam
dizendo que ela havia comprado aquele banco
da prefeitura.
Desta vez a sua
abstração foi quebrada por um jovem ciclista estacionado na outra extremidade
do velho banco.
— Não quer
sentar-se? — Perguntou a sorridente senhora Augustine puxando para si sua bolsa e
um chapéu de palha.
Embora gostasse
muito de ler, e também arriscando às vezes a escrever alguma coisa,
definitivamente naquele momento uma boa prosa com alguém também seria
interessante.
Chamava-se Franklin,
morava há três quadras dali e era costume todas as tardes pedalar pela orla
inteira. Ao sentar-se a única palavra que ele disse foi: -Droga!
Valendo-se então
de um sentido natural que somente as mulheres carregam, não foi difícil
perceber que o jovem ciclista carregava em si algum peso, alguma mágoa. Coisas
da vida disse ele depois.
....E assim curiosa e com bastante sutileza provocou-o dizendo:
— Não quer me
contar sobre essas “coisas da vida?” Ah!, me desculpe, às vezes perco as
medidas das coisas. Porém, ele não se opôs e contou lá uma história.
Por causa de uns
descompassos amorosos o rapaz mostrava-se completamente descrente, desiludido. Quase
em via de se transformar em um Pigmaleão moderno!
A mulher ouvia
tudo atentamente e um tanto aflita apertava o livro contra o próprio peito. De
súbito interrompeu-o:
— Então você
acha que o amor está morrendo ou já morreu somente porque o seu não foi
correspondido? — Perguntou em tom bem amistoso.
— Penso que
está morto, melhor assim.— Respondeu ele sem pestanejar demonstrando uma mágoa
muito profunda.
A senhora
Augustine parou por uns segundos fitando o rapaz e disse:
— Permita-me,
caro jovem ! Eu seguiria o exemplo do escritor Mark Twain, que ao ler num
jornal o anuncio de sua própria morte , dirigiu ao diretor do mesmo um
telegrama dizendo: “Caro diretor desse prestigiado jornal. A notícia da
minha morte está muito exagerada”
O rapaz esboçou
um sorriso e permaneceu sem dizer nada! A senhora Augustine continuou e amenizando
a conversa perguntou:
— O que faz de bom na vida?
Antes que
respondesse, uma jovem andando de patins passou e fixou os olhos no rapaz com certo interesse. Timidamente olhou
para ela, mas logo tratou de responder a pergunta feita.
— Eu entrei na
faculdade de arquitetura e urbanismo, é o que eu gosto, mas não sei se começo
já. Trabalho no escritório com o meu pai.
— Parabéns é
uma bela profissão...
A senhora
Augustine depois de ouvir o relato do rapaz, pareceu despertada a contar um
pouco da sua história também. Afinal, dividir alguma mágoa, solidão, um
desabafo, ou coisa que seja, é melhor que guardá-lo do mundo dentro de si
próprio.
E balançando a
cabeça a senhora parecia agora muito ansiosa e com o senho fechado,
colocou o livro junto ao chapéu e quebrou o silêncio perguntando:
— Meu rapaz, tenho algo a dizer... posso agora também me desabafar? Você me permite?
— Claro!
— Veja! isso já
tem mais de cinquenta anos e somente agora criei coragem para desabafar.
Curioso no é? Na época éramos muito jovens. Eu tinha somente quinze anos e também muitos planos para o
futuro. Conhecíamos um ao outro desde criança, éramos vizinhos de quintal. Nos
amávamos tanto que não queríamos perder tempo, então ficamos noivos. Seu nome
era Francesco. Mas veio a guerra, a grande guerra que matou milhões de pessoas
em todo o mundo. Então ele foi convocado, logo partiu e foi direto para o
front. Recebi somente uma carta dele e
daí para frente nunca mais se soube do seu paradeiro, nem os seus próprios
familiares. Acabou virando estatística. A guerra terminou e foi dolorido não
vê-lo nunca mais e ter todo o nosso sonho terminar por terra, como os milhares
de soldados dentre ele, que por lá tombaram. Na época algumas pessoas foram
testemunhas da nossa história, contudo eu nunca havia desabafado com alguém,
nunca mesmo , nem aos meus filhos e marido. Ter testemunhas de um fato é bem
diferente do desabafo. No desabafo, você diz, chora, lamenta, mas acaba
tirando, ou aliviando o peso no seu coração! E é como
estou me sentindo agora, mais leve.
Talvez bafejado
pelo acaso ou destino, nos encontramos
aqui, pessoas de diferentes épocas e desabafamos, não é maravilhoso? Coisas
da vida!! Apanhando um lencinho, com as pontas dobradas tocava levemente os
cantinhos dos olhos.
— Que história.
Acudiu o rapaz, suspirando.
— E assim é a
vida, a gente sempre aprendendo com os outros. E continuou a senhora Augustine — Sabe? A pesar de tudo, me formei, me casei, tenho dois lindos filhos e também
fiquei viúva. Na semana que vem completará cinco anos da minha viuvez. Depois
que ele morreu, mudei-me para o litoral
e venho desde então aqui neste jardim e sento-me nesse mesmo banco. Leio, tenho
lido muito ultimamente, olho para o tempo, observo as pessoas, converso e quem
sabe, esperando que Francesco ainda apareça........ e corra a me abraçar.. Sabe? .... é besteira minha,
brincadeira, não sofro mais com isso e já faz tanto tempo não é? e além disso,
sempre amei meu esposo.
— Podemos não
sofrer mas a lembrança, fica não é ?
— Sim caro rapaz, a lembrança, a lembrança levamos
para onde formos, mas ela não pode
deixar com que fiquemos parados no tempo. Já pensou eu ficar aqui parada desde
a minha juventude? Você é jovem, está só começando a vida, então viva
intensamente --- (Too Young) é uma bela canção de amor.... ouça e não perca o
tempo nem a esperança e a esperança, deve se entendida como movimento, não como
algo estagnado onde se espera que as coisas aconteçam por si só.
Franklin ouvia
tudo aquilo como uma aula de experiência de vida,. ouvia atentamente. Foi um
dia muito prazeroso e proveitoso para ambos, mas a noite já caia a leste.
Despediram-se com muito entusiasmo prometendo um qualquer dia.
Se o rapaz mudou
ou não a sua maneira de pensar, isso não
se sabe. Mas a senhora Augustine parecia sutilmente mudada. Curvou-se e apanhou
a bolsa e o livro. Colocou o chapéu de palha e segurando-o por causa de uma repentina lufada, virou-se mais uma
vez e viu o rapaz desaparecendo na
distância e num tom melancólico quase em murmúrio disse: "Francesco,
Francesco”.
Conto de José
Alberto Lopes - Abril de 2020/ corr. Em março de 2021
FIM