quinta-feira, 1 de abril de 2021

O Banco da Senhora Augustine

 

O banco da senhora Augustine

 

 

Passando pela  avenida era possível ver a linha do mar interrompida de quando em quando pelas densas folhagens do imenso e bem cuidado jardim da orla marítima.

O sol já caia a oeste. Era um verão muito forte naquele janeiro, mas a brisa da tarde deixava tudo mais agradável.

Em um dos poucos bancos vazios a senhora Augustine se acomodou. Uma multidão, como se fossem  formigas indo e vindo, caminhava pela areia próximo a água e outra pelo calçadão protegida por enormes amendoeiras-da-praia.

Um casal caçoava de um homem nem velho, nem moço, que manquejava. A senhora presenciando a cena o repudiou chamando a atenção do casal que logo se afastou sem olhar para trás.

Limpando mais uma vez os óculos, recolocou-os, abriu um livro e começou a ler. Naquela tarde porém, por  mais que tentasse não conseguia se compenetrar na leitura. Passava os olhos num pequeno trecho, marcava e fechava o livro ficando a divagar por uns bons momentos. E foi assim por quase todo o tempo em que ali permanecera sozinha.

Desde quando se mudara para o litoral, a senhora Augustine criou  o hábito de sentar-se ali  no mesmo banco e sempre à tardinha. Isso praticamente todos os dias em que o tempo favorecesse. Os amigos até brincavam dizendo que ela havia comprado aquele banco  da prefeitura.

Desta vez a sua abstração foi quebrada por um jovem ciclista estacionado na outra extremidade do velho banco.

— Não quer sentar-se? — Perguntou a sorridente senhora Augustine puxando para si sua bolsa e um chapéu de palha.

Embora gostasse muito de ler, e também arriscando às vezes a escrever alguma coisa, definitivamente naquele momento uma boa prosa com alguém também seria interessante.

Chamava-se Franklin, morava há três quadras dali e era costume todas as tardes pedalar pela orla inteira. Ao sentar-se a única palavra que ele disse foi: -Droga!

Valendo-se então de um sentido natural que somente as mulheres carregam, não foi difícil perceber que o jovem ciclista carregava em si algum peso, alguma mágoa. Coisas da vida disse ele depois.

....E assim curiosa  e com bastante sutileza provocou-o dizendo:

— Não quer me contar sobre essas “coisas da vida?” Ah!, me desculpe, às vezes perco as medidas das coisas. Porém, ele não se opôs e contou lá uma história.

Por causa de uns descompassos amorosos o rapaz mostrava-se completamente descrente, desiludido. Quase em via de se transformar em um Pigmaleão moderno!

A mulher ouvia tudo atentamente e um tanto aflita apertava o livro contra o próprio peito. De súbito interrompeu-o:

— Então você acha que o amor está morrendo ou já morreu somente porque o seu não foi correspondido? — Perguntou em tom bem amistoso.

— Penso que está morto, melhor assim.— Respondeu ele sem pestanejar demonstrando uma mágoa muito profunda.

A senhora Augustine parou por uns segundos fitando o rapaz e disse:

— Permita-me, caro jovem ! Eu seguiria o exemplo do escritor Mark Twain, que ao ler num jornal o anuncio de sua própria morte , dirigiu ao diretor do mesmo um telegrama dizendo: “Caro diretor desse prestigiado jornal. A notícia da minha morte está muito exagerada”

O rapaz esboçou um sorriso e permaneceu sem dizer nada! A senhora Augustine continuou e amenizando a conversa perguntou:

  — O que faz de bom na vida?

Antes que respondesse, uma jovem andando de patins passou e  fixou os olhos  no rapaz com certo interesse. Timidamente olhou para ela, mas logo tratou de responder a pergunta feita.

— Eu entrei na faculdade de arquitetura e urbanismo, é o que eu gosto, mas não sei se começo já. Trabalho no escritório com o meu pai.

— Parabéns é uma bela profissão...

A senhora Augustine depois de ouvir o relato do rapaz, pareceu despertada a contar um pouco da sua história também. Afinal, dividir alguma mágoa, solidão, um desabafo, ou coisa que seja, é melhor que guardá-lo do mundo dentro de si próprio.

E balançando a cabeça a senhora  parecia  agora muito ansiosa e com o senho fechado, colocou o livro junto ao chapéu e quebrou o silêncio perguntando:

— Meu  rapaz, tenho algo a dizer... posso agora também me desabafar? Você me permite?

— Claro!

— Veja! isso já tem mais de cinquenta anos e somente agora criei coragem para desabafar. Curioso no é? Na época éramos muito jovens. Eu tinha somente  quinze anos e também muitos planos para o futuro. Conhecíamos um ao outro desde criança, éramos vizinhos de quintal. Nos amávamos tanto que não queríamos perder tempo, então ficamos noivos. Seu nome era Francesco. Mas veio a guerra, a grande guerra que matou milhões de pessoas em todo o mundo. Então ele foi convocado, logo partiu e foi direto para o front. Recebi somente  uma carta dele e daí para frente nunca mais se soube do seu paradeiro, nem os seus próprios familiares. Acabou virando estatística. A guerra terminou e foi dolorido não vê-lo nunca mais e ter todo o nosso sonho terminar por terra, como os milhares de soldados dentre ele, que por lá tombaram. Na época algumas pessoas foram testemunhas da nossa história, contudo eu nunca havia desabafado com alguém, nunca mesmo , nem aos meus filhos e marido. Ter testemunhas de um fato é bem diferente do desabafo. No desabafo, você diz, chora, lamenta, mas acaba tirando, ou aliviando o peso no seu coração! E é  como  estou me sentindo agora, mais leve.

Talvez bafejado pelo acaso ou destino, nos encontramos  aqui, pessoas de diferentes épocas e desabafamos, não é maravilhoso? Coisas da vida!! Apanhando um lencinho, com as pontas dobradas tocava levemente os cantinhos dos olhos.

— Que história. Acudiu o rapaz, suspirando.

— E assim é a vida, a gente sempre aprendendo com os outros. E continuou a senhora Augustine — Sabe? A pesar de tudo, me formei, me casei, tenho dois lindos filhos e também fiquei viúva. Na semana que vem completará cinco anos da minha viuvez. Depois que ele morreu, mudei-me  para o litoral e venho desde então aqui neste jardim e sento-me nesse mesmo banco. Leio, tenho lido muito ultimamente, olho para o tempo, observo as pessoas, converso e quem sabe, esperando que Francesco ainda apareça........ e corra  a me abraçar.. Sabe? .... é besteira minha, brincadeira, não sofro mais com isso e já faz tanto tempo não é? e além disso, sempre amei meu esposo.

— Podemos não sofrer mas a lembrança, fica não é ?

— Sim  caro rapaz, a lembrança, a lembrança levamos para onde formos, mas  ela não pode deixar com que fiquemos parados no tempo. Já pensou eu ficar aqui parada desde a minha juventude? Você é jovem, está só começando a vida, então viva intensamente --- (Too Young) é uma bela canção de amor.... ouça e não perca o tempo nem a esperança e a esperança, deve se entendida como movimento, não como algo estagnado onde se espera que as coisas aconteçam por si só.

Franklin ouvia tudo aquilo como uma aula de experiência de vida,. ouvia atentamente. Foi um dia muito prazeroso e proveitoso para ambos, mas a noite já caia a leste. Despediram-se com muito entusiasmo prometendo um qualquer dia.

Se o rapaz mudou ou não a sua maneira de pensar, isso  não se sabe. Mas a senhora Augustine parecia sutilmente mudada. Curvou-se e apanhou a bolsa e o livro. Colocou o chapéu de palha e segurando-o por causa  de uma repentina lufada, virou-se mais uma vez e viu  o rapaz desaparecendo na distância e num tom melancólico quase em murmúrio disse: "Francesco, Francesco”.

 

 

 

 

 

Conto de José Alberto Lopes - Abril de 2020/ corr. Em março de 2021

 

 

 

FIM

 

 

sábado, 13 de março de 2021

Poemetos.....

 


Num dia vernal

Tu passavas por mim.....

No verão era bom ver teu sorriso.

No outono despenquei-me a teus pés.

No inverno agasalhei-me em teus braços.

Já noutra primavera, éramos um campo de girassóis....

E então, bastou o olhar de Van Ghog!

 

 

Quisera descansar meus braços

Sobre o teu corpo cansado

E fazê-lo leve, leve...

Num afago constante, alongado!

Até que o meu cansaço

Envolva o teu cansaço

Num descansar de abraços!

 


Ah! os teus cantares

Longínquos devem estar.

O! cigarra do eterno canto

Em que salgueiro ou ciprestes, vives

Que não vivo a ouvi-la cantar?



Na gravidade do outono

As folhas seguem um rito.:

Saltam para o abismo da mata

E por uns instantes.... são borboletas....

 


A procura de flores

Andei jardins de ninguém.....

Mas um dia a encontrei

E era a mais bela entre as floristas,

Mais bela que as flores que procurei!

 

 

Na minha cumeeira

Andorinhas vão se aninhando.

No meu jardim medram lindíssimas flores.

À tarde, enquanto chilreiam,

Colho borboletas, um buquê.

São belas e envolventes suas cores,

São pétalas que voam

Que entrego a você!


Quero que o tempo passe
Com rigor
Que passe depressa
pra logo eu ver o meu amor!


Depois,
quero que o tempo pare
pare tão somente
pra eu amá-la eternamente!



Ausência...

 
Eu não sentia a tua boca
Mesmo colado aos lábios teus.
Eu não sentia o teu corpo
Mesmo tendo-o sob o meu.
 
Apenas um gozo profundo...
E  tu apenas gemidos fingidores.
Agora somos argila fria, muda.
Dois belos vasos sem flores!
 

O DOM DO PENSAR...


O dom do pensamento
é magia, é poder.
O dom do pensamento
é ave altaneira
e seu olhar e voo
são livres, livres...
O dom do meu pensamento
me leva até você.
Pois posso sentir
o vinho dos seus lábios
se derramando em meu cálice.
Antevejo suas mãos liriais
espalhando o bálsamo
sobre meu corpo.
Posso sentir o arrepio do calor
que  ora invade  a minha alma.
O dom do pensamento
não vê distâncias nem barreiras,
nem tempo, nem momento..
Principalmente
quando o meu pensamento..(desejo)
se apaixona por seu dom de mulher..


Hoje, estou menos eu. Sabe o que isso significa?
É o mesmo que  olhar-se no espelho e não se vê.
Ah!! são tantas coisas...
É ouvir passos alheios subindo  pela escada
e em vão imaginar que são os teus ...

Hoje amanheci sem graça, sem sol, sem brisa...sem nada!
Ouvi passos que  não te traziam a mim.
Ouvi risos. _  Oh! quem dera fossem...
Somente  o teu perfume ainda impregnado
naquela camisa amarrotada
ficou como o restolho do sorgo deixado no campo!
..........................
De A- 2019 / abril

Idílio-I

Venha e apague meus olhos
com teus lábios de rubi.
E com tu língua
acenda as estrelas cansadas
do céu da minha boca!
Só porque te vi novamente
meu coração acelerou-se
feito peito de colibri.

De A. - abril-2019

Ode à minha escrivaninha

Ah! Essa escrivaninha
Simples como eu,
antiga e marcada
como  marcadas estão
minhas mãos e rosto!
É sobre ela que deito
meus papéis e livros
E ponho-me a escrever.

Quantas e quantas vezes
pestanejei sobre seu madeiro
nas solitárias madrugadas,
de silencio quase absoluto
em que teimosamente
esperava por ela, a inspiração!

Seu verniz  gasto e já sem brilho,
É o mesmo que a minha pele
Flácida e opaca!
De pernas enfraquecidas
E sem prumo, como o meu caminhar!
Assim mesmo, está comigo
Já há muito tempo, minha escrivaninha
De madeiro escuro naquele cantinho claro
da minha sala de estar!

Até a sua  pequena gaveta,
repleta de papéis;
versos mal acabados,
esquecidos, segredos...,
emperrada está, como a minha
própria memória!
Como se vê, somos iguais em quase tudo!

Poderia ter sido  uma guitarra,
Um barco, uma cama ou uma janela.
Sim, e  até uma escrivaninha!
Mas, por que  escrivaninha?
A bem da verdade;
Tenho ali o som poético duma guitarra
O barco das minhas viagens imaginárias.
A cama das minhas paixões e desejos.
E a janela das minhas paisagens..

O que mais preciso eu
Se não dessa síntese...
Dessa escrivaninha
Antiga, de madeiro escuro
naquele cantinho claro
Da minha sala de estar?

Poema de Alberto L.
21/out. 2016

Gosto quando...

Gosto quando a tua língua,
Serpente cega e louca,
Invade o céu da minha boca
E acende as  minhas estrelas.

Quando a brisa da tua fala
Me invade suavemente
Com palavras indecentes
E me preparas para ti.

Gosto de sentir  as tuas mãos
Entre meus vales e picos,
E quando paras nos bicos
E mamas meus desejos.

Gosto quando invades
O meu umbigo pequeno
Com volteios serenos
Provocando-me arrepios.

Gosto quando me assolapas,
Com tua maré voluptosa,
O meu delta cor-de-rosa
Num intenso preamar.....


AL-2010

Teu Odre

No ir e vir constante,
deliberadamente
quebrou-se o teu odre
e derramou em minha cava
ainda imaculada,
o teu vinho
imaculado e Nobre!


En el ir y venir constante,
deliberadamente
se rompió tu odre
y derramó en mi cava
inmaculada,
tu vino
¡Inmaculado y noble!


De AL -Trad. jun
AL out. 2019

Papel

Se tu fosses meu papel
e eu a tua pena,
escreveria  em ti
profundo poema!!


(O milagre do vinho começa com a fé no trabalho do lavrador)

ALC out. 2016

embarcação

Comparo o homem
a uma embarcação:
Os olhos são o leme.
O peito é a quilha.
O coração, o que impulsiona.
À sua frente a vida,
o mar da travessia!
Há homens que se lançam ao mar
e homens que preferem
as amarras dum Cais!


Alberto L
out. 2016

A NOITE

Gosto da noite!
Dos aromas e sons,
do movimento no cais.
Do mormaço, da brisa,
das mariposas insanas
girando, girando!
A chuva na noite
revelando suas pérolas.
As mulheres na noite
são sempre mais belas.
As luzes da cidade
parecem um braseiro
avivado pela viração noturna.
Ah! a noite  com seus sortilégios,
seus mistérios...
Se a noite é uma criança
o dia é um velho cansado, exangue!
A noite é mesmo outro universo
onde o poeta uni versos e poetiza.
A noite livra-me da opressão,
dá vida, e sendo bela a vida
a noite é belíssima.
A noite é mãe do universo.
Na noite não há deuses,
anjos nem demônios a importunarem!
Por que eles também
gostam da noite!


Poema de Alberto Lopes
10 de outubro/2016






 

terça-feira, 2 de março de 2021

Tristonho/Margens

 

 

Sou tristonho por ser a margem

De um rio sinuoso e lento

Sendo tu a margem oposta!

 

Lá, deitas sobre tapetes de seixos.

Lá onde a brisa parece mais sonora!

 

Onde o Ingazeiro arqueado sobre as águas

Brinca contigo e com os peixinhos

Desde os primeiros raios de sol.

 

Ah! como sou tão tristonho

Por ser a margem de cá!

 

Aqui o sol quase não chega

E em vão os meus outonos

Tentam alcançar a tua primavera.

 

Ah! essa margem tão perto, tão distante!

 

Sou tristonho por ser esta margem

Sombria, abrupta. Penhasco da minh’alma.

Porém mesmo assim é bom te ver.

Prefiro a tristeza de vê-la mesmo do lado de lá!

Mesmo que tuas mãos jamais me acolham

Como acolhem os peixinhos e o  Ingazeiro.

 

 

De José Alberto Lopes –

31/01/2021

 

 

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Um Conto das Arábias

 

Um Conto das Arábias

 

 

                                        Capítulo I

 

Ainda bem jovem deixou seus pais pois resolvera tentar a vida em um outro lugar. Bagdá foi o seu destino. Abandonou Al-Fallujah, sua cidade natal e pegando a estrada até a metrópole, caminhou incansavelmente a pé por vários dias. Levava um cantil e um velho alforje contendo algo para comer, uma coberta e uma pequena flauta de madeira. Chamava-se Salém Namir

Finalmente chegou à Bagdá capital dos Califas. Assim que pisou em seus domínios, ficou maravilhado com as longas alamedas margeadas por belas Tamareiras que amenizavam o calor daqueles que por ali passavam. Além dos jardins bem cuidados também roubavam a sua atenção, a arquitetura dos  pomposos palácios e Suas Mesquitas.

Caminhava a esmo quando de repente viu-se no meio de uma (Suk) rua onde se localizam as tendas, bazares e lojas, como uma espécie de feira-livre muito agitada e nada organizada, onde se vendia  tudo o que se possa imaginar. O burburinho e os pregões dos mercadores o deixaram perplexo. Já presenciara algo semelhante, porém, nunca com aquela multidão.

Continuando a passos lentos por aquelas ruas estreitas, observou um menino maltrapilho e que parecia muito sagaz, furtando principalmente frutas das bancas que ficavam na rua. Apostava no vacilo do vendedor para subtraí-lo. Salém também estava com fome, porém preferia pedir. Mas as suas primeiras tentativas foram frustrantes. Continuou fazendo parte daquela multidão, quando de repente trombou com aquele menino que cabisbaixo se deliciava com o resultado do seu mais recente furto!  Para a sua surpresa, como se fosse algo destinado ele lhe ofereceu algumas daquelas frutas. Sentaram-se num recanto à sombra de uma enorme figueira. Seu nome era Iezid, um Bagdali  um pouco mais jovem que perambulava  nas feiras às vezes com pequenos trabalhos a troco de quase nada. Tentava sempre levar para casa alguma coisa afim de ajudar seus avós.

Após saborearem algumas doçuras Iezid propôs a Salém uma parceria. Enquanto um distraía o vendedor, o outro aplicaria o furto. A princípio o rapaz ficou aturdido com aquilo e recusou a oferta. Mas com o ardil do agora seu amigo e a fome que o afligia, e mesmo sabendo que se arriscava perder as mãos se fosse pego, aceitou a lida!

Porém na primeira investida não tiveram sorte. Na tentativa de roubarem um homem que se apoiava numa muleta, viram-se logo entre duas tempestades de gente. E aquelas pessoas iradas gritavam.:

__ Peguem os ladrões, peguem!!

Iezid, mais ladino, conhecedor dos atalhos partiu em fuga escapando dos perseguidores, porém o jovem Salém, inexperiente, foi preso. Amarraram seus pés e mãos, cobriram-lhe os olhos e o levaram até  um deserto e lá o deixaram à própria sorte. __ Que Allah lhe tenha compaixão, disse um daqueles que o trouxeram. O tropel dos cavalos se afastando foi o último som de algo vivente que ele ouviu. Com muito esforço e suor, conseguiu  afinal se desvencilhar das amarras.

A noite chegava, aterrorizante e silenciosa e percebeu ele que à medida que o sol se punha o ar ficava cada vez mais frio. Percebeu também que  abaixo da superfície a  areia ainda conservava  bastante calor. Então teve uma ideia! Começou a cavar uma espécie de berço para se beneficiar do calor retido. Soprava um vento! Sua primeira tentativa foi muito frustrante, pois deu em  uma superfície muito dura, uma rocha! Tentou mais um e somente no terceiro, conseguiu areia macia e ali cavou uns palmos. Enrolou-se  nos trapos que tinha e deitou-se olhando para o firmamento, única paisagem possível. No céu límpido entre outras, brilhava a inconfundível Al-Schira, nome dado pelos Árabes à estrela Sirius, alfa da “constelação cão maior” e com os olhos fixos na sua luminosidade, adormeceu.

O dia mal raiava, acordou num sobressalto e só então pode perceber de fato a intenção daqueles que o abandonaram ali naquele lugar. Longe das rotas das caravanas, sem água e comida, era impensável que sobrevivesse um ou dois dias. Entrou em desespero e disse a si mesmo. - “Antes tivessem cortado as minhas mãos, sofreria menos”.

Por todos os ângulos que olhasse a paisagem parecia a mesma para onde seguir? Mais uma vez a onda de desespero tomou conta de Salém quando notou que aquele mesmo sol vermelho já queimando o seu rosto, refletia milhares de minúsculos cristais no lugar onde à tarde/ noite tentara cavar em vão. Curioso aproximou-se e conferindo com detalhes, não teve dúvidas. Aquilo era chamado de ouro branco. Acabara de descobrir uma salina.

A certeza daquela descoberta, era a mesma de que se saísse dali vivo, íntegro, seria um homem rico. Acalmou-se pela primeira vez, apanhou a sua pequena flauta e tocou uma melodia que aprendera quando ainda era criança. Agora o silencio do deserto tinha uma companhia. Embalado pelo som que tirava, quase não percebeu uma voz que vinha , parecia, além de umas dunas. Parou e  atentou certificando de que não era um engano. Mais alguns segundos e ouviu com mais clareza:

__ Salém, Salém, Salém! Cadê você?

Assustado levantou-se e protegendo os olhos com as mãos, custou a acreditar. A pouca distância alguém montado descia uma pequena elevação.

__ Salém, Salém. Insistiu!

Para a sua felicidade e espanto era Iezid, o bagdali que sem intenção o colocara naquela situação. Vinha ao passo lento de um camelo magro e extenuado.

__ Por Allah, você está vivo!

__ Como me encontrou aqui, nesse deserto?

__ Você não está assim tão longe das rotas das caravanas. Ouvi quando eles falavam do lugar. suba aqui e veja.  

Cumprimentando efusivamente o amigo, perguntou:

__ Tem alguma coisa para comer e beber? Estou desde ontem quase a morrer de fome!

Um pouco de água e uns  pães amenizaram a situação. E enquanto faziam o desejum  Salém agradeceu mais uma vez o  amigo e  abraçando-o disse:

__ Fidelidade assim como essa, nunca encontrei em lugar nenhum e em agradecimento e confiança e por dever-lhe minha vida, vou te revelar uma coisa!

Caminharam alguns passos e:

__ Por Allah! Gritou Iezid  pulando de alegria! É sal e da melhor qualidade, eu acho. Agora você é um homem rico!

__ Quer ser meu sócio? Perguntou.

__ Se essa honra me for dada! – Mac Allah (Poderoso é Deus) Respondeu quase aos prantos.

Abrindo um surrado alforje Iezid lhe ofereceu uma peça de Fustan.

__ Mas isso é roupa de mulher, retrucou.

__ Coloque  sobre a cabeça, é para disfarçar. Passaremos pela cidade e aqueles  malucos ainda estão por lá, lembra? Vamos para a casa de meus avós.

__ Está bem caro amigo! Mas me responda uma pergunta: Onde você arranjou esse animal que ora nos suporta?

__ Digamos que peguei emprestado, respondeu sorrindo.

E assim, partiram os dois sobre o dorso daquele camelo magro e ainda extenuado.

  

 

                                               Capítulo – II


Já ao sol  a pino atravessando a cidade, deram com uma grande  comitiva. Eram homens trajando roupas  vistosas, algumas cobertas de coloridas pedrarias, cada qual em seu belo Jamal (camelo). Curioso, Salém perguntou do que se tratava:

E eram, o Califa e Beremiz, este, o famoso calculista, rodeados por seus guardas protetores.

__ Beremiz, o calculista! Interessante, a sua fama  também chegou lá em Al-Fallujah comentou brevemente.

E continuaram ao passo lento do velho camelo!

Chegando próximo ao destino saltaram e com uns tapinhas na perna do bicho, disse Iezid:

__ Vá, guerreiro! Vá para seu dono e diga a ele que agradecemos pelo empréstimo.....

 Caminhando por uma trilha chegaram a uma pequena vila onde se erguiam casas muito humildes.

__ Aquele é o meu avô, apontou para um velho sentado próximo à entrada de um casebre. Depois de uma doença, nunca mais ficou bom, não reconhece ninguém. Aquela é a minha vó. Ela é cega mas conhece cada palmo desse lugar. Completou.

Chegaram sorrateiros  porém a avó logo percebeu alguma coisa e perguntou:

__ É você não é? E onde você andou que sumiu logo cedo? E quem veio junto?

__ Um amigo que conheci na cidade. Vou ser o sócio dele vovó! Respondeu com ar de felicidade.

__ Falando sério, o senhor Faruk esteve aqui na parte da manhã e novamente você não estava, passei vergonha. Mas ele volta daqui uma semana. Concluiu enquanto preparava  a massa para os pães que ela vendia  ali mesmo.

Foram para um rancho contíguo onde havia uma tina com água para o banho. No percurso Salém percebeu que alguma coisa estava errada com o amigo e interferiu:

__ De repente parece que você ficou chateado, triste. Quem é esse senhor Faruk?

Foi num estalar de dedos que Iezid se atirou aos braços do amigo e caindo em prantos lhe revelou algo inusitado.:

__ Então você não é Iezid? E qual seu verdadeiro nome?

__ Leilá. Respondeu cobrindo o rosto com as mãos espalmadas.

Assim como Iezid se atirou em seus braços, Salém num instante se desvencilhou dela. E o silencio de alguns segundos pareceu de um século.

Na verdade, devido à pobreza em que viviam, Leilá fora há algum tempo prometida  a esse homem chamado Faruk. Agora era somente uma questão de tempo. Bastaria que ocorresse a primeira menstruação e a pobre pertenceria definitivamente à esse homem, que na verdade a compraria por uns míseros dinares. E era disfarçando-se de menino que planejava fugir de casa para sempre, livrando-se  desse momento tão doloroso.

Abismado e quase sem jeito, Salém pediu-lhe calma e disse:

__ Não se preocupe, somos sócios, lembra? Lhe dei a palavra. Amanhã trataremos disso com o Califa e esse senhor Faruk, nunca mais lhe pertubará! A calma voltara a reinar e com o consentimento da avó, o amigo pode ali pernoitar.

Ter uma audiência com o tal Califa era coisa quase impossível a curto prazo. Então tiveram uma ideia. Salém se colocaria como conhecido de Beremiz. Usaria o prestígio do calculista junto à corte e com um pouco de sorte, quem sabe conseguiria seu intento. E a sua astúcia fora coroada de êxito.

No dia marcado lá estava o jovem Salém caminhando pelos corredores do palácio, guiado por um escravo bastante solicito. Parecia um labirinto trabalhado com o mais puro mármore de várias nuances. Um belo jardim onde três jovens  cuidavam das flores ficava de fronte à longa janela do salão-mor do Califa.

___ Salã Aleikum! No que eu posso te ajudar, jovem?

Curioso foi, que após explanar sobre a pauta, que era o ponto principal, a conversa acabou se alongando para outros assuntos. E se estendeu tanto que só foi interrompida porque a voz do Muezim começava a ecoar pelos quatro cantos da cidade chamando os fiéis para a oração da tarde! E acrescentava em alto e bom som: __”Lembrai-vos de que tudo é pó, exceto Allah!”

Na manhã do dia seguinte, bem antes de o sol chegar, já estavam a caminho. Foi um longo e duro percurso. Finalmente lá estavam e para a surpresa de Salém  Beremiz fora designado para calcular a extensão da salina, além de testemunha para a elaboração de documento de posse, onde também seria feito os cálculos para as taxas devidas, posto que toda aquela extensão de terras pertencia ao próprio Califa. O que se apurou afinal, foi que se tratava de  uma reserva muito promissora.

 

 

                                         Capítulo - III

 

Não demorou e o resultado daquele bafejar de sorte, bambúrrio, como queiram, já o projetava como um importante homem de negócios. Com efeito transitava pelos ambientes mais sofisticados, junto ao Califa; o próprio Calculista; o Cheique;  Emir e importantes mercadores dentre outros.

Mas a afeição maior ele conseguiria do próprio Califa. Muito provavelmente porque ele havia há algum tempo perdido o seu primogênito, ainda muito jovem e a presença de Salém o reportava ao próprio filho. A amizade entre eles, parecia em dado momento,  coisa entre pai e filho.

Era comum em algumas noites, depois das orações, uma pequena reunião recreativa onde o jovem, agora, homem de negócios, já se apresentava como figura sempre presente principalmente na mesa de jogo. O Xantrange, uma  forma modificada do jogo de xadrez conhecida no ocidente. Ali o jovem também se destacava pois era um exímio enxadrista e firmava ainda mais o orgulho do Califa sobre ele.

Numa tarde a cidade apresentava um grande movimento, fora do que era comum. O centro, principalmente o Suque, estavam praticamente tomados por uma grande caravana vinda de Damasco. Era comum que duas ou três vezes por ano isso acontecesse. Traziam novidades que abasteciam também os mercadores locais.

Naquela tarde Salém e agora sua noiva Leilá caminhavam pela cidade à procura de artigos para o enxoval de casamento e por sorte por causa principalmente dos damascenos  que acabavam de chegar, encontraram tudo o que procuravam.

O ar estava impregnado   por agradável aromas de perfumes que se misturavam aos das especiarias. Enquanto isso os mercadores, apregoavam suas mercadorias com muito estilo numa algazarra sem par.

__ Este perfume  veio do Egito, igual ao usado pela rainha.......

__ Veja a qualidade e a beleza desta cortina, digna dos mais ricos palácios e o preço? Barato, barato!.............

__ Se interessou por este tapete jovem casal? Aproveita, preço de ocasião....

Depois de uma tarde cansativa de compras, Salém deixou a noiva em sua casa  e dirigiu-se para o seu próprio gabinete de negócios. Lá exausto demais jogou-se em um divã e  dormiu como uma pedra! Quando  acordou já era bem tarde da noite e uma lua cheia atravessava a sua janela. E antes que esfregasse os olhos para acordar de vez, alguém chamou pelo seu nome:

__ Salém, Salém! Cadê você?

Saiu do buraco de areia ainda enrolado no seu surrado cobertor, tendo os cabelos molhados pelo orvalho da madrugada e protegendo os olhos por causa do sol que já raiava, assombrou-se. Montado num velho camelo, era Iezid que desesperado perguntou:

__ Por Allah, você está bem meu amigo?

__ É você mesmo? Conferiu Salém com os olhos ainda sonolentos e alegrou-se. Tem alguma coisa para se beber e comer? Concluiu.

__ Trouxe pão e água, toma!

__ E como você me encontrou assim tão fácil?

__ Geralmente é para cá que mandam os pobres que vagam pela cidade. Logo imaginei... A trilha das caravanas não fica assim tão distante. Estamos pertinho do vilarejo onde eu moro com os meus avós. Suba, vamos para casa!

__ Espera um pouco!

__ O que foi?

__ Nada! - Ah! é uma longa história!

E assim partiram os dois em divertida conversa sobre o dorso do velho camelo!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

sábado, 13 de fevereiro de 2021

A Estátua de Sal

 

A Estátua de sal

 

 

Na distante ilha de Lesbos nasceu e viveu. Ali se transformou numa das mais famosas escultoras gregas! Era bela e jovem a ponto de provocar inveja entre as mulheres e admiração entre os homens.

Seu nome era Tessália e com o tempo acabou também se decepcionando com as mulheres por acha-las falsas, vulgares e por vezes infantis demais, pelo menos  com  aquelas  as quais  se relacionara até então. Desgostosa optou pelo celibato e assim foi por alguns anos da sua vida!

Apesar da solidão em que mergulhara nunca parou o seu trabalho de escultora.

Dentro  da técnica que criara, executava seus ensaios primeiro  em pedra de sal para somente depois em definitivo, esculpi-las em mármore.

Certo final de tarde após dias trabalhando num enorme bloco de sal teve uma visão incomum.   Ao terminar o ensaio uma linda jovem pôs - se à sua frente. Ali estava a perfeição das perfeições, pode-se assim dizer. Admirou-a por todos os ângulos e com muita convicção exclamou bem alto que ali se encontrava o seu ideal feminino. Foi então à primeira vista que se apaixonou por sua criação e deu-lhe rapidamente o nome de Leucádia.

A loucura então se apoderou dela. Foi tanta que não quis perder tempo. Apelou ao conselho implorando à Afrodite que fosse permitida à sua estátua o sopro da vida! Um privilégio raríssimo, já naquela época. E foram dias cruéis de espera. Após inúmeros julgamentos, Afrodite aceitou o pedido, porém lhe deixou também uns conselhos: “ Que não tardasse em passar do ensaio para o  mármore, assim, com segurança a sua criação seria para sempre a sua amada, a criatura dos seus sonhos.

Numa tarde cansada da lida e ansiosa por esperar, Tessália caiu num sono profundo. Mas não o bastante para perceber, lá pela madrugada, que alguma coisa excepcional atravessava o portal do seu aposento. A passos lentos viu a mais bela das silhuetas aproximar-se da cabeceira do seu divã. Espantada e quase incrédula, viu finalmente o seu ideal feminino, a paixão da  sua vida, que meio tímida cobria com as mãos o sexo e os seios. Era finalmente Leucádia em carne e osso, um ser humano como pedira à deusa Afrodite. Era da mesma altura da sua criadora, esbelta, rosto com uma simetria ímpar, pele clara como o mais fino sal do Mediterrâneo, olhos azuis como o Egeu e cabelos negros e encaracolados. Conferiram-se mutuamente e se abraçaram demoradamente. Tessália, derramando lágrimas de alegria ofereceu-lhe então uma vestimenta da moda, um Chiton e sandálias de couro.  A paixão se transformara num grande amor e por esse amor ela era capaz de tudo.

Estavam sempre juntas e reciprocamente se ajudavam até nas mais simples tarefas. Depois dessa feliz realidade, de forma definitiva, a também bela escultora sabedora que jamais repetiria essa proeza quando a trabalhasse no mármore, resolveu não arriscar e por nada arriscaria. Ignorou então os conselhos recebidos.

Numa tarde recebendo uma carta viajaram para Atenas. Foi a convite da academia de artes e ofícios. Lá também aproveitariam para celebrar os primeiros meses de união. A primeira boda.

O local de trabalho se encontrava fechada por um bom tempo. Depois do seu maravilhoso prêmio Tessália já não mais esculpia e os pedidos se avolumavam. O seu amor por Leucádia era o seu principal motivo de vida, parecia um vício, um ópio para a sua felicidade. Com isso foi deixando aos poucos o seu  trabalho para segundo plano.

Em Atenas no salão nobre, já na entrada, a beleza das duas mulheres era notada por todos os participantes.

Alguém numa roda de vinho em certo momento disse apontando discretamente para Tessália:--- Vejam senhores que maravilha de mulher, uma verdadeira beldade! Curvilínea, sorriso, andar, perfeição a toda prova, são dignos de um grande escultor, a natureza sem dúvidas.

-- Nasceu para ser uma bela estátua, uma deusa, disse outro.—Soube pela lista de convidados que seu nome é Leucádia e faz companhia  à não menos bela escultora Tessália de Lesbos. Concluiu.

No dia seguinte ao evento, sob um forte verão, lá estavam elas, unidas como sempre. Um passeio ao ar livre como era de costume. Foi num belo campo às margens do rio Cefiso em cujos remansos haviam nenúfares brancas e amarelas. Sobre uma  tapete com motivos florais espalharam frutas e odres de vinho. Riam e se amavam mordiscando uvas e Tâmaras e  entornando taças e taças da solene bebida.

E se amavam tanto quanto riam e bebiam, e os risos eram tantos e tão altos que reverberavam por todo o bosque ao redor. Então, já embriagados, se desnudaram e correram para o rio. Lançaram-se felizes num belo mergulho às águas refrescantes. Abraçaram-se e beijaram-se longamente quase imersos e foi em pleno êxtase que Tessália  percebeu que beijava e abraçava um corpo rígido e com gosto amargo. Ali fugindo de suas mãos  a sua doce Leucádia  se transformara na primitiva estátua de sal e rapidamente se diluía à mercê da correnteza do pequeno Cefiso. Gritando desesperadamente Tessália tentou em vão resgatar o seu amor, mas acabou ela também desaparecendo e seu corpo nunca foi encontrado!

 

 

 

Um conto de José Alberto Lopes. – fev. 2021