quinta-feira, 1 de abril de 2021

O Banco da Senhora Augustine

 

O banco da senhora Augustine

 

 

Passando pela  avenida era possível ver a linha do mar interrompida de quando em quando pelas densas folhagens do imenso e bem cuidado jardim da orla marítima.

O sol já caia a oeste. Era um verão muito forte naquele janeiro, mas a brisa da tarde deixava tudo mais agradável.

Em um dos poucos bancos vazios a senhora Augustine se acomodou. Uma multidão, como se fossem  formigas indo e vindo, caminhava pela areia próximo a água e outra pelo calçadão protegida por enormes amendoeiras-da-praia.

Um casal caçoava de um homem nem velho, nem moço, que manquejava. A senhora presenciando a cena o repudiou chamando a atenção do casal que logo se afastou sem olhar para trás.

Limpando mais uma vez os óculos, recolocou-os, abriu um livro e começou a ler. Naquela tarde porém, por  mais que tentasse não conseguia se compenetrar na leitura. Passava os olhos num pequeno trecho, marcava e fechava o livro ficando a divagar por uns bons momentos. E foi assim por quase todo o tempo em que ali permanecera sozinha.

Desde quando se mudara para o litoral, a senhora Augustine criou  o hábito de sentar-se ali  no mesmo banco e sempre à tardinha. Isso praticamente todos os dias em que o tempo favorecesse. Os amigos até brincavam dizendo que ela havia comprado aquele banco  da prefeitura.

Desta vez a sua abstração foi quebrada por um jovem ciclista estacionado na outra extremidade do velho banco.

— Não quer sentar-se? — Perguntou a sorridente senhora Augustine puxando para si sua bolsa e um chapéu de palha.

Embora gostasse muito de ler, e também arriscando às vezes a escrever alguma coisa, definitivamente naquele momento uma boa prosa com alguém também seria interessante.

Chamava-se Franklin, morava há três quadras dali e era costume todas as tardes pedalar pela orla inteira. Ao sentar-se a única palavra que ele disse foi: -Droga!

Valendo-se então de um sentido natural que somente as mulheres carregam, não foi difícil perceber que o jovem ciclista carregava em si algum peso, alguma mágoa. Coisas da vida disse ele depois.

....E assim curiosa  e com bastante sutileza provocou-o dizendo:

— Não quer me contar sobre essas “coisas da vida?” Ah!, me desculpe, às vezes perco as medidas das coisas. Porém, ele não se opôs e contou lá uma história.

Por causa de uns descompassos amorosos o rapaz mostrava-se completamente descrente, desiludido. Quase em via de se transformar em um Pigmaleão moderno!

A mulher ouvia tudo atentamente e um tanto aflita apertava o livro contra o próprio peito. De súbito interrompeu-o:

— Então você acha que o amor está morrendo ou já morreu somente porque o seu não foi correspondido? — Perguntou em tom bem amistoso.

— Penso que está morto, melhor assim.— Respondeu ele sem pestanejar demonstrando uma mágoa muito profunda.

A senhora Augustine parou por uns segundos fitando o rapaz e disse:

— Permita-me, caro jovem ! Eu seguiria o exemplo do escritor Mark Twain, que ao ler num jornal o anuncio de sua própria morte , dirigiu ao diretor do mesmo um telegrama dizendo: “Caro diretor desse prestigiado jornal. A notícia da minha morte está muito exagerada”

O rapaz esboçou um sorriso e permaneceu sem dizer nada! A senhora Augustine continuou e amenizando a conversa perguntou:

  — O que faz de bom na vida?

Antes que respondesse, uma jovem andando de patins passou e  fixou os olhos  no rapaz com certo interesse. Timidamente olhou para ela, mas logo tratou de responder a pergunta feita.

— Eu entrei na faculdade de arquitetura e urbanismo, é o que eu gosto, mas não sei se começo já. Trabalho no escritório com o meu pai.

— Parabéns é uma bela profissão...

A senhora Augustine depois de ouvir o relato do rapaz, pareceu despertada a contar um pouco da sua história também. Afinal, dividir alguma mágoa, solidão, um desabafo, ou coisa que seja, é melhor que guardá-lo do mundo dentro de si próprio.

E balançando a cabeça a senhora  parecia  agora muito ansiosa e com o senho fechado, colocou o livro junto ao chapéu e quebrou o silêncio perguntando:

— Meu  rapaz, tenho algo a dizer... posso agora também me desabafar? Você me permite?

— Claro!

— Veja! isso já tem mais de cinquenta anos e somente agora criei coragem para desabafar. Curioso no é? Na época éramos muito jovens. Eu tinha somente  quinze anos e também muitos planos para o futuro. Conhecíamos um ao outro desde criança, éramos vizinhos de quintal. Nos amávamos tanto que não queríamos perder tempo, então ficamos noivos. Seu nome era Francesco. Mas veio a guerra, a grande guerra que matou milhões de pessoas em todo o mundo. Então ele foi convocado, logo partiu e foi direto para o front. Recebi somente  uma carta dele e daí para frente nunca mais se soube do seu paradeiro, nem os seus próprios familiares. Acabou virando estatística. A guerra terminou e foi dolorido não vê-lo nunca mais e ter todo o nosso sonho terminar por terra, como os milhares de soldados dentre ele, que por lá tombaram. Na época algumas pessoas foram testemunhas da nossa história, contudo eu nunca havia desabafado com alguém, nunca mesmo , nem aos meus filhos e marido. Ter testemunhas de um fato é bem diferente do desabafo. No desabafo, você diz, chora, lamenta, mas acaba tirando, ou aliviando o peso no seu coração! E é  como  estou me sentindo agora, mais leve.

Talvez bafejado pelo acaso ou destino, nos encontramos  aqui, pessoas de diferentes épocas e desabafamos, não é maravilhoso? Coisas da vida!! Apanhando um lencinho, com as pontas dobradas tocava levemente os cantinhos dos olhos.

— Que história. Acudiu o rapaz, suspirando.

— E assim é a vida, a gente sempre aprendendo com os outros. E continuou a senhora Augustine — Sabe? A pesar de tudo, me formei, me casei, tenho dois lindos filhos e também fiquei viúva. Na semana que vem completará cinco anos da minha viuvez. Depois que ele morreu, mudei-me  para o litoral e venho desde então aqui neste jardim e sento-me nesse mesmo banco. Leio, tenho lido muito ultimamente, olho para o tempo, observo as pessoas, converso e quem sabe, esperando que Francesco ainda apareça........ e corra  a me abraçar.. Sabe? .... é besteira minha, brincadeira, não sofro mais com isso e já faz tanto tempo não é? e além disso, sempre amei meu esposo.

— Podemos não sofrer mas a lembrança, fica não é ?

— Sim  caro rapaz, a lembrança, a lembrança levamos para onde formos, mas  ela não pode deixar com que fiquemos parados no tempo. Já pensou eu ficar aqui parada desde a minha juventude? Você é jovem, está só começando a vida, então viva intensamente --- (Too Young) é uma bela canção de amor.... ouça e não perca o tempo nem a esperança e a esperança, deve se entendida como movimento, não como algo estagnado onde se espera que as coisas aconteçam por si só.

Franklin ouvia tudo aquilo como uma aula de experiência de vida,. ouvia atentamente. Foi um dia muito prazeroso e proveitoso para ambos, mas a noite já caia a leste. Despediram-se com muito entusiasmo prometendo um qualquer dia.

Se o rapaz mudou ou não a sua maneira de pensar, isso  não se sabe. Mas a senhora Augustine parecia sutilmente mudada. Curvou-se e apanhou a bolsa e o livro. Colocou o chapéu de palha e segurando-o por causa  de uma repentina lufada, virou-se mais uma vez e viu  o rapaz desaparecendo na distância e num tom melancólico quase em murmúrio disse: "Francesco, Francesco”.

 

 

 

 

 

Conto de José Alberto Lopes - Abril de 2020/ corr. Em março de 2021

 

 

 

FIM