(Foto internete)
Carl Hoepcke
A última morada.
A última morada.
O saguão de espera para embarque, estava fervilhando de gente.
Aquela seria a primeira viagem de Júlio e a primeira de navio. O jovem era
caixeiro viajante. Estava ansioso.
O transatlântico Carl Hoepcke era um
navio luxuoso, raro em portos nacionais. De origem alemã, construído em 1.926,
fora adquirido juntamente com seu irmão gêmeo, o Anna, para compor a frota duma promissora empresa de navegação
de cabotagem instalada em Florianópolis Santa Catarina.
Possuía duas classes. Tinha ótimos
camarotes, salão de festa, mesas com cadeiras giratórias, cozinha sofisticada,
além de louças e pratarias importadas. Também era provido de rádio para
navegação, e até um fumadouro com belas e confortáveis poltronas e divãs. Um
piano animava os passageiros e era tocado pelo telegrafista e pianista do
navio.
No saguão o burburinho continuava,
misturado aos rangidos das rodas sobre os trilhos dos bondes que passavam ali
na avenida Portuária.
Um casal chegara atrasado e foi logo
perguntando sobre a partida do navio.
Teve sorte, pois o atraso já somava uns trinta minutos.
Era um homem de meia idade e
impecavelmente trajado. Acompanhava-o uma linda jovem também muito elegante. A
diferença de idade entre eles, chamava
a atenção. Ela usava um chapéu com longas plumas, bolsa e sapatos da mesma cor
do vestido e muitas joias.
O homem acomodou-se numa poltrona próximo de Júlio, acendeu um legítimo Havana
e começou a folhear o matutino. De seus
dedos coruscavam grandes anéis de ouro com pedrarias em ônix e rubis. Do seu
lado, a moça permanecia em pé. Isso
deixou Júlio intrigado.__Que homem Grosso! Pensou. Então demonstrando
cavalheirismo, levantou-se e cedeu o
seu lugar a ela.
Nesse simples gesto, percebeu o quanto
o mundo tornava-se cada vez mais
pequeno. Era sem dúvidas, Madeleine, não tinha como não a reconhecer. Não! não
era ilusão da fumaça desgarrada do seu cigarro! Era ela.
__ Meu Deus! é você? Disse ele
surpreso, quase sussurrando.
__Júlio.....!! gaguejou a moça!
Foram namorados durante muitos anos.
Trocaram juras e até arremedos de
alianças de compromisso, ainda no tempo
de colégio. Porém, a vida os separara.
Enquanto se ensaiava um diálogo, por
sobre o jornal, aquele homem os
observava, com um olhar nada amistoso.
A moça franziu o canto da boca,
agradeceu friamente e sentou-se dirigindo ao chão um olhar submisso. Nas entrelinhas, Júlio, de certa forma,
entendera o que se passava, engoliu
seco e afastou-se do local dirigindo-se
até o bar, onde pediu um café, papel e lápis. Numa pequena xícara carnuda, um
café preto que pelava, e enquanto bebericava escrevia algo apressadamente. Seu peito ressoava forte!
Depois retornou para onde estava o casal e se apresentou ao homem, como caixeiro viajante
oferecendo-lhe seu cartão de
referência. O brutamonte o ignorou abrindo as duas páginas do jornal,
conferindo as cotações do dia. Mesmo assim, Júlio, correndo o risco conseguiu
entregar à Madeleine, o seu bilhete. Ela o agasalhou fechando a mão e
o guardou entre os seios.
Finalmente todos puderam se
dirigir ao portaló do navio e em seus
camarotes se acomodaram.
Então o apito surdo estremeceu o ar, o
cais, e o capitão respirou aliviado!
O mar estava calmo naquela manhã, sol
entre nuvens e um noroeste fraco.
Logo o luxuoso navio deslizava
preguiçosamente, deixando para trás o seu rastro n'água, uma negra cabeleira de
fumaça e a velha Santos dos Andradas.
Mal guardara sua mala, retornou ao convés e com olhos aquilinos varreu cada espaço na esperança de ver novamente
Madeleine. Mas não foi o que aconteceu e quando já voltava descendo do convés, um funcionário do navio o chamou
discretamente:
__Senhor Júlio, senhor Júlio! pediram
que lhe entregasse isso aqui! Disse
passando-lhe rapidamente um papel
dobrado em dois.
__Onde está ela? Interpelou Júlio. Mas
o funcionário se retirou sem nada mais dizer.
Ansioso, correu até a sua cabine. Era
uma pequena carta assinada com a letra M. A bela cursiva sacramentava o que Júlio não queria
acreditar. Estavam casados e fazia pouco tempo, e ela não era feliz.....Ele era
um homem influente no meio político, tinha negócios na Bolsa do café, além de
ser um homem grosso.O casamento acontecera
por imposição das duas famílias.
Porém, ela nunca se esquecera de Júlio, o amava, e isso abriu ao rapaz uma
réstia de luz....
Suspirando, releu a carta e depois, com
os olhos lacrimejados jogou-se sobre a
impecável cama e dormiu. Não demorou, acordou de um sonho estranho, um
pesadelo. Sonhara que Madeleine era uma das camareiras do navio, que aparecendo
em seu dormitório, pedia-lhe
desesperadamente que ele deixasse o
local. Acordou puxando o ar e com o coração bombeando forte. Lavou o rosto,
sacou um cigarro e logo estava
recomposto. Mas, já havia perdido a
vontade de viajar e sua ansiedade transformara-se em tristeza.
__Por que, Madeleine? Por quê?
Subiu e caminhou até a amurada do navio e lá debruçado, com as mãos entrelaçadas, ficou por longo tempo
olhando para um ponto fixo no espaço. Depois tirou do bolso a
carta e leu mais uma vez. Sua cabeça latejava! A perdera novamente....Mas, os dias felizes que tiveram, ainda viajavam no convés da sua
memória... Parecia sonhar acordado.
Então ali quase em transe, foi repentinamente despertado pelo alarme intermitente que tocava.:
__Incêndio na casa de máquinas, organizem-se em fila indiana e dirijam-se até a área dos botes salva vidas.
Sigam o líder, gritou o imediato com voz firme, através de uma corneta.
Eram 168 almas a bordo, entre tripulantes e passageiros. No desespero
alguém lançou-se ao mar, e infelizmente nunca
foi encontrado.
Mas, num ato impensado Júlio quebrara
as regras. Correndo na contramão, desceu até o seu camarote. Apanhava seus
pertences quando uma camareira o surpreendeu. Energicamente pediu-lhe que abandonasse
a área rapidamente e
seguisse os demais. Pôde levar apenas a pequena valise. Saiu trôpego ganhando
finalmente o convés. Acomodado em seu
escaler, ficou a matutar sobre a cena
do pesadelo e a cena real que a pouco
vivenciara...e se perguntava por Madeleine!
Era manhã do dia 27 de setembro de
1.956, quando há uns 29 kilômetros de
Santos ocorrera o acidente que só não
se transformou em tragédia,
graças ao navio Inglês Norseman da WT
e do outro navio, o Itaquatiá da CNNC
que navegando próximo a área, prontamente realizaram o resgate de todos.
Júlio, por mais que tentasse, não conseguiu mais avistar a garota. Chateado ali
mesmo abandonou a profissão.
Desespero por desespero o capitão e
alguns tripulantes tentaram uma última e arriscada manobra para salvar o navio do incêndio que ainda o consumia.
Arrastaram-no com o auxílio de um rebocador e o encalharam propositalmente no estuário Conceiçãozinha. Após debelada as
chamas, bem que o Carl Hoepcke se
negara a flutuar. Depois de várias
tentativas foi finalmente rebocado para o seu porto de origem.
Porém o orgulho, principalmente dos
Florianopolitanos estava ferido. O
então glamouroso navio já não era o
mesmo. Chamuscado, sem a chaminé, movendo-se, não por moto próprio, deixou seus
admiradores consternados. Mesmo assim o receberam como um heroi que retorna da guerra. A ponte
Hercílio Luz estava tomada de gente naquele dia, e o aplaudiram quando ele a
cruzou.
Mas o destino do Carl Hoepcke estava
decretado! No estaleiro Arataca, ferindo mais uma vez o orgulho da sua gente, o
então luxuoso navio de passageiro foi transformado em navio cargueiro.
Dai para frente nunca mais tiveram
notícias dele. O máximo que se
soube é que fora rebatizado com outro
nome. Assim como Júlio também nunca mais teve notícias de Madeleine.
Como cargueiro, manteve a sua dignidade
cortando as águas costeiras do país,
transportando carvão, açúcar, madeira...dentre outras mercadorias.
Caro leitor, essa história bem que
poderia terminar aqui. Porém, num dia ,
quase final de fevereiro, Júlio, como era seu hábito, saiu para a sua caminhada
matinal pela orla marítima de Santos. Sair do canal 3 e chegar ao canal 6 era uma boa puxada. O sol ainda
era tímido e o ar estava fresco depois da chuva da madrugada. Foi pela areia.
O imenso mar o acompanhava a bombordo,
mas foi à sua proa ao longe que uma
cena insólita aos poucos se descortinava . Caminhou mais um estirão, e. Era um
navio encalhado nas areias de Santos.
Aproximou-se e viu que se chamava Recreio. Conferiu-o com pouco interesse e
dali retornou, agora, sob as sombras
das velhas amendoeiras.
Muitos anos depois, lendo um artigo num
jornal da cidade, muitas recordações vieram à tona!
Aquele navio chamado Recreio.
Tratava-se na verdade, do antigo Carl Hoepcke que depois de cargueiro ainda
serviu como boate flutuante e que ficava ancorado na praia do Góes em Santos.
Aconteceu assim:
Era madrugada do dia 28 de fevereiro de
1.971, quando aquele navio sentiu descochar as suas amarras. Nem a pesada
âncora deu conta, uma tremenda tempestade o arrasta em portentosos vagalhões,
arremessando-o à praia.
Amanheceu e um gigante monumento
de aço
com mais de 62 metros de comprimento estava lá há uns 100 metros da avenida, aprumado sobre a
areia como se pedisse socorro. Logo
aquela fortuita coisa digere a atenção de centenas de pessoas que correm
até o local, espantadas e curiosas. __ Como pode a areia prender um gigante assim? Pode!!
Depois de intermináveis discussões burocráticas, a
sorte estava lançada. Numa tarde vieram uns homens e a bico de maçarico o
retalharam como boi no matadouro.
somente lhe pouparam o leme, que ainda hoje encontra-se guardado num armazém do porto de Santos. o restante virou sucata
barata.
É possível ainda hoje, na baixa-mar,
ver partes grandes do seu caso que ainda jazem nas escuras areias daquela ponta de praia.
Aquele artigo, aquele acontecimento,
deixou Júlio mais uma vez triste e saudoso. No dia seguinte saiu logo cedo e dirigiu-se
ao local do antigo naufrágio. Era
inverno, a praia estava praticamente
deserta, as amendoeiras estavam desnudas,e o vento cortava de frio.
Era baixa-mar, então ele pode ver
resquícios do velho casco.
Quedou-se por minutos..
Depois, num ato solene, reduziu a
pedaços, a carta que Madeleine havia
escrito há mais de quarenta
anos e atirou tudo sobre o casco semi-exumado!
Emocionado, deu as costas e caminhou
pela areia, sem olhar para trás, desaparecendo aos poucos em meio à névoa.
E eram os pedaços tão pequeninos
que as gaivotas as colhiam como
se fossem migalhas atiradas.
FIM
Um conto de José Alberto Lopes.
março/maio de 2015