Vespertino
- o Saci do oco do Bambu
CAPÍTULO
- I
Num
início de verão enquanto folgava numa rede na varanda de casa tive um sonho tão
cristalino como as águas do riachinho perto de casa. Parecia até um filme.
Talvez influenciado por um presente de aniversário que meu pai prometera há
muito tempo e que finalmente se concretizara.
Sendo
meu pai filho de ferreiro, colocou então em prática tudo aquilo que aprendera. Conhecendo os segredos do aço e da
forjaria, transformou um pedaço de mola de caminhão numa útil e bela
machadinha. Polida e encabada com peroba
dava gosto ver, sem contar que a guardava pendurada na parede do sótão de casa.
Era como se fosse um troféu, por isso quase nunca a usei.
Então,
voltemos ao sonho. Era um dia qualquer apanhei a tal machadinha e sai a campo
para aferir-lhe o corte e a firmeza do cabo. Notei que gleba acima, uns homens
colocavam fogo no mato, queimada para posterior plantio, coisa comum por ali. O
vento levava a fumaça para a outra banda então pude entrar na capoeira sem
nenhuma preocupação. O céu era de um azul bem escuro mas, estava parcialmente
coberto por uma gaze de fumaça e o
cheiro da queimada era forte. Olhei mais uma vez e tudo parecia tranquilo, sob
controle. Porém, fogo é fogo e quem brinca pode se queimar. De repente o vento
mudara de direção e soprava ainda com mais vigor. Com a volúpia de um esfomeado
começou a engolir a coivara e foi avançando para dentro da capoeira onde eu
estava. O ar ficou denso de fumaça, difícil de respirar. Apressei-me um tanto
desnorteado pois dentro da mata fechada cada paisagem é semelhante a outra que
você já viu, a impressão é exatamente essa e achar o caminho certo ficava cada vez mais difícil principalmente
tendo o fogo fechando pelos lados. O calor, o assovio e o estralar do mato verde estavam cada vez mais próximos.
Olhei, olhei e vi através de um bambuzal uma pequena saída.
Embrenhei-me
por ali um tanto ofegante, mas algo estranho estava acontecendo e parei. Uma
das touceiras movia-se com força como se alguma coisa quisesse arrancá-la.
Aproximei-me e ouvi uma voz abafada. Perguntei a mim mesmo o que era aquilo!
E a touceira continuava a se mexer ainda mais com força. Assombrado com aquilo e preocupado com
o fogo, saiu algo assim:
- Quem
é de lá ?
E a voz
abafada respondeu:
- Abra o bambu, preciso sair, se aqui ficar
nem cinza vai sobrar.
-
Tenho um machado! Retruquei.
- Se teu machado for bem amolado bata aqui do
lado. No terceiro gomo bata devagar para não me machucar.
Foi
mais ou menos isso que eu entendi, ele
falava muito rápido como um disco em rotação acelerada.
Então
no desespero do fogo vindo e no assombramento da voz que vinha do bambu, cravei
umas três vezes a machadinha. Era uma touceira de Bambu Barriga de Buda. Abri
definitivamente com as mãos e digo a você caro leitor, se não fosse um sonho eu teria
desmaiado ali mesmo, mas apenas me espantei quando de dentro do oco do bambu
saiu em desespero uma criaturinha de uns trinta centímetros de altura, com
todas as características de um humano que agradecendo disse:
- Bom machado, bom menino, sou grato,
Vespertino! Vespertino era como ele se chamava. Acho que estava nu,
coloquei-o no meu alforje, agarrei firme a machadinha e safei-me do bambuzal já
quase sem fôlego por causa da fumaça. Dei num charco e quase me arrastando
cheguei em casa.
Agora
a minha maior preocupação era escondê-lo e ninguém poderia saber dele. Meus
pais não apareciam no sonho, mas, alguns amigos sim e esses despistei o tempo
todo.
A
princípio coloquei a criatura numa panela de ferro mas ele recusou e disse com
ironia, que no bambu estava bem melhor.
Por fim seu abrigo acabou sendo uma velha talha de barro. Coloquei-o no sótão,
levei uns panos para se cobrir e umas frutas e água. Depois ficamos várias
horas conversando, eu sentado sobre um tatame e ele debruçado sobre a borda da
talha segurando o queixo com uma das mãos e observando atentamente o redor.
Aquilo tudo parecia tão real e era de alguma forma, penso eu.
Já bem
familiarizado um ao outro, e ele era por natureza bastante expansivo, lhe fiz
uma pergunta:
- Um
gnômo?
- Não, não João! Tu não vais acreditar, mas
sei que vais rir. Sou aquele que chamam de Saci.
- Como
assim?. O saci só tem uma perna! O gorro vermelho e o cachimbo?
- Quem
disse? Ah, ah, ah. Viu, e tu quase cortastes as minhas duas pernas lá no
bambuzal lembra? E eu estava sem nada. Que maldade! Conheces alguém que já viu um de verdade? - A não ser
tu mesmo! Concluiu.
Fiquei
calado por um tempo com um dedo na boca a ouvi-lo. Eu era muito criança e
aquilo por mais que fosse um sonho era a pura realidade.
Da
floresta para o meu sótão e graças a minha machadinha lá estávamos nós, cara a
cara. Quem diria! Contou-me que muitos da sua irmandade jazem por ai por causa dos desmatamentos, agrotóxicos e o
fogo. Disse uns impropérios há esses
homens. Era uma pequena criatura, mas falava com a propriedade de um sábio,
assim passei a admirá-lo e muito.
CAPÍTULO
– II
No dia
seguinte bem cedo corri até o sótão para vê-lo, mas ele não estava lá. Desci
correndo e preocupado sem ter a mínima ideia de onde ele poderia ter ido, mas
um instinto me levou até o nosso pomar. Não demorou e apareceu ele saindo do
bananal montando um enorme porco-do-mato que resfolegava sobre aquele chão
úmido e sombrio. Apeou sorrindo e veio ao meu encontro, mas antes, batendo três
vezes com as palmas das mãos fez com que o estranho animal que o servira desse
meia volta e desaparecesse em meio à
plantação. Convidou-me para brincar e despreocupadamente saímos pelos campos.
Ele
sem dúvidas também adorava brincar. Era craque em fazer patacoadas. Fingia
beber leite na flor de copo-de-leite; assoviava enquanto chupava cana; e ria de
forma escandalosamente gostosa. Pulava sobre as poças dando cambalhotas
mortais, desfazia o caminho das formigas; assaltava pomares carregados de
doçuras e corria a gritar depois de cutucar alguns gansos do vilarejo.
Confessou-me
que tinha também medo da trovoada, do vendaval, e dos incêndios. Ah! caro leitor,
também assim como eu tinha medo de crescer!
Também
ensinou-me muitas coisa.: a Ler os livros da natureza; chupar manga sem
descascá-la. A fechar um corte no pé usando visgo ou nódoa de banana verde;
distinguir o que era bom e o que não era bom para se comer no mato. Também
aprendi a tirar um ovo do ninho, mas deixar
o outro e até usar folha de inhame como guarda-chuva.
Foi um
dia daqueles em que a noite parecia nunca chegar, mas chegou. Vadiamos tanto,
brincamos tanto, fizemos tanta coisa que finalmente nos cansamos. Retornamos
para casa e naquela mesma rede da varanda, deitamos e dormimos..
Não
sei quanto tempo havia passado, mas acordei ainda bem sonolento. Foi o barulho
do motor do velho Chevrolet. Meus pais
acabavam de retornar da cidade onde foram fazer compras. Ainda meio atordoado
bati a mão do lado da rede como a proteger meu amigo Vespertino. Levantei-me e
fui ajudar a descarregar a caminhonete.
-
Tivemos que dar uma grande volta pra
chegar aqui. O fogo que colocaram lá no morro ficou sem controle e chegou até a
estrada. Disse meu pai.
Era
fato que ao acordar senti um cheiro de
queimada e isso me deixou de certa forma pensativo.
Mais
tarde, já no lusco fusco, voltei à rede e mil coisas passaram pela minha cabeça
ao relembrar aquele sonho, tão real como se eu tivesse acabado de assistir a um
filme!
Quando
me preparava para entrar vi que no cantinho da varanda formara-se um pequeno
redemoinho que levantava poeira gravetos e folhas secas. Passou bem na minha
frente, diminuiu a velocidade, depois prosseguiu até o nosso pomar e desapareceu na quase escuridão.
Mas antes, ouvi uns assovios, iguais aqueles do sonho. Juro que balbuciei
alguma coisa atestando que eu estava ali acordado.
Conto
de J A Lopes – Jul / ago - 2018