quinta-feira, 26 de julho de 2018

O saci





Vespertino - o Saci do oco do Bambu



CAPÍTULO - I


Num início de verão enquanto folgava numa rede na varanda de casa tive um sonho tão cristalino como as águas do riachinho perto de casa. Parecia até um filme. Talvez influenciado por um presente de aniversário que meu pai prometera há muito tempo e que finalmente se concretizara.
Sendo meu pai filho de ferreiro, colocou então em prática tudo aquilo que  aprendera. Conhecendo os segredos do aço e da forjaria, transformou um pedaço de mola de caminhão numa útil e bela machadinha. Polida e encabada com  peroba dava gosto ver, sem contar que a guardava pendurada na parede do sótão de casa. Era como se fosse um troféu, por isso quase nunca a usei.
Então, voltemos ao sonho. Era um dia qualquer apanhei a tal machadinha e sai a campo para aferir-lhe o corte e a firmeza do cabo. Notei que gleba acima, uns homens colocavam fogo no mato, queimada para posterior plantio, coisa comum por ali. O vento levava a fumaça para a outra banda então pude entrar na capoeira sem nenhuma preocupação. O céu era de um azul bem escuro mas, estava parcialmente coberto por uma  gaze de fumaça e o cheiro da queimada era forte. Olhei mais uma vez e tudo parecia tranquilo, sob controle. Porém, fogo é fogo e quem brinca pode se queimar. De repente o vento mudara de direção e soprava ainda com mais vigor. Com a volúpia de um esfomeado começou a engolir a coivara e foi avançando para dentro da capoeira onde eu estava. O ar ficou denso de fumaça, difícil de respirar. Apressei-me um tanto desnorteado pois dentro da mata fechada cada paisagem é semelhante a outra que você já viu, a impressão é exatamente essa e achar o caminho certo  ficava cada vez mais difícil principalmente tendo o fogo fechando pelos lados. O calor, o assovio e o estralar  do mato verde estavam cada vez mais próximos. Olhei, olhei e vi através de um bambuzal uma pequena saída.
Embrenhei-me por ali um tanto ofegante, mas algo estranho estava acontecendo e parei. Uma das touceiras movia-se com força como se alguma coisa quisesse arrancá-la. Aproximei-me e ouvi uma voz abafada. Perguntei a mim mesmo o que era aquilo! E  a touceira continuava  a se mexer ainda mais com  força. Assombrado com aquilo e preocupado com o fogo, saiu algo assim:
- Quem é de lá ?
E a voz abafada respondeu:
- Abra o bambu, preciso sair, se aqui ficar nem cinza vai sobrar.
- Tenho um machado! Retruquei.
- Se teu machado for bem amolado bata aqui do lado. No terceiro gomo bata devagar para não me machucar.
Foi mais ou menos  isso que eu entendi, ele falava muito rápido como um disco em rotação acelerada.
Então no desespero do fogo vindo e no assombramento da voz que vinha do bambu, cravei umas três vezes a machadinha. Era uma touceira de Bambu Barriga de Buda. Abri definitivamente com as mãos e digo a você caro  leitor, se não fosse um sonho eu teria desmaiado ali mesmo, mas apenas me espantei quando de dentro do oco do bambu saiu em desespero uma criaturinha de uns trinta centímetros de altura, com todas as características de um humano que agradecendo disse:
- Bom machado, bom menino, sou grato, Vespertino! Vespertino era como ele se chamava. Acho que estava nu, coloquei-o no meu alforje, agarrei firme a machadinha e safei-me do bambuzal já quase sem fôlego por causa da fumaça. Dei num charco e quase me arrastando cheguei em casa.
Agora a minha maior preocupação era escondê-lo e ninguém poderia saber dele. Meus pais não apareciam no sonho, mas, alguns amigos sim e esses despistei o tempo todo.
A princípio coloquei a criatura numa panela de ferro mas ele recusou e disse com ironia, que no bambu estava bem  melhor. Por fim seu abrigo acabou sendo uma velha talha de barro. Coloquei-o no sótão, levei uns panos para se cobrir e umas frutas e água. Depois ficamos várias horas conversando, eu sentado sobre um tatame e ele debruçado sobre a borda da talha segurando o queixo com uma das mãos e observando atentamente o redor. Aquilo tudo parecia tão real e era de alguma forma, penso eu.
Já bem familiarizado um ao outro, e ele era por natureza bastante expansivo, lhe fiz uma pergunta:
- Um gnômo?
- Não, não João! Tu não vais acreditar, mas sei que vais rir. Sou aquele que chamam de Saci.
- Como assim?. O saci só tem uma perna! O gorro vermelho e o cachimbo?
- Quem disse? Ah, ah, ah. Viu, e tu quase cortastes as minhas duas pernas lá no bambuzal lembra? E eu estava sem nada. Que maldade! Conheces  alguém que já viu um de verdade? - A não ser tu mesmo! Concluiu.
Fiquei calado por um tempo com um dedo na boca a ouvi-lo. Eu era muito criança e aquilo por mais que fosse um sonho era a pura realidade.
Da floresta para o meu sótão e graças a minha machadinha lá estávamos nós, cara a cara. Quem diria! Contou-me que muitos da sua irmandade jazem por ai  por causa dos desmatamentos, agrotóxicos e o fogo. Disse uns impropérios  há esses homens. Era uma pequena criatura, mas falava com a propriedade de um sábio, assim passei a admirá-lo e muito.



CAPÍTULO – II


No dia seguinte bem cedo corri até o sótão para vê-lo, mas ele não estava lá. Desci correndo e preocupado sem ter a mínima ideia de onde ele poderia ter ido, mas um instinto me levou até o nosso pomar. Não demorou e apareceu ele saindo do bananal montando um enorme porco-do-mato que resfolegava sobre aquele chão úmido e sombrio. Apeou sorrindo e veio ao meu encontro, mas antes, batendo três vezes com as palmas das mãos fez com que o estranho animal que o servira desse meia  volta e desaparecesse em meio à plantação. Convidou-me para brincar e despreocupadamente saímos pelos campos.
Ele sem dúvidas também adorava brincar. Era craque em fazer patacoadas. Fingia beber leite na flor de copo-de-leite; assoviava enquanto chupava cana; e ria de forma escandalosamente gostosa. Pulava sobre as poças dando cambalhotas mortais, desfazia o caminho das formigas; assaltava pomares carregados de doçuras e corria a gritar depois de cutucar alguns gansos  do vilarejo.
Confessou-me que tinha também medo da trovoada, do vendaval, e dos incêndios. Ah! caro leitor, também assim como eu tinha medo de crescer!
Também ensinou-me muitas coisa.: a Ler os livros da natureza; chupar manga sem descascá-la. A fechar um corte no pé usando visgo ou nódoa de banana verde; distinguir o que era bom e o que não era bom para se comer no mato. Também aprendi a tirar um ovo do ninho, mas deixar  o outro e até usar folha de inhame como guarda-chuva.
Foi um dia daqueles em que a noite parecia nunca chegar, mas chegou. Vadiamos tanto, brincamos tanto, fizemos tanta coisa que finalmente nos cansamos. Retornamos para casa e naquela mesma rede da varanda, deitamos e dormimos..
Não sei quanto tempo havia passado, mas acordei ainda bem sonolento. Foi o barulho do motor  do velho Chevrolet. Meus pais acabavam de retornar da cidade onde foram fazer compras. Ainda meio atordoado bati a mão do lado da rede como a proteger meu amigo Vespertino. Levantei-me e fui ajudar a descarregar a caminhonete.
- Tivemos que dar uma  grande volta pra chegar aqui. O fogo que colocaram lá no morro ficou sem controle e chegou até a estrada. Disse meu pai.
Era fato que ao acordar senti um cheiro  de queimada e isso me deixou de certa forma pensativo.
Mais tarde, já no lusco fusco, voltei à rede e mil coisas passaram pela minha cabeça ao relembrar aquele sonho, tão real como se eu tivesse acabado de assistir a um filme!
Quando me preparava para entrar vi que no cantinho da varanda formara-se um pequeno redemoinho que levantava poeira gravetos e folhas secas. Passou bem na minha frente, diminuiu a velocidade, depois prosseguiu até o  nosso pomar e desapareceu na quase escuridão. Mas antes, ouvi uns assovios, iguais aqueles do sonho. Juro que balbuciei alguma coisa atestando que eu estava ali acordado.






Conto de J A Lopes – Jul / ago - 2018


sexta-feira, 20 de julho de 2018

Rascunho - 03










Depois que aquela cabana passou a ser habitada, tudo por ali ficou mais alegre e  vistoso.
O senhor Kensuke e a senhora Yumi viviam felizes tirando da terra o que a terra lhes devolvia graças ao trabalho árduo e dedicado.
Além das hortaliças a senhora mantinha também um lindo jardim que ficava em frente à cabana.
Todos que por ali passavam ficavam maravilhados, não somente com  o colorido das flores, como também pelo capricho com que ela se dedicava aos bonsais e também aos arranjos de flores.
Uma cerca baixa feita de bambu onde se agarravam democraticamente um pé de bucha; uma aboboreira e flores de ipomeia, circundava a gleba onde moravam.
Um vento fraco parecia anunciar mudanças  no tempo. Chegara noite e na aldeia tudo era silêncio, exceto pelos coaxares que vinham próximo de uma pequena plantação de arroz logo abaixo.
O casal já se preparava para se recolher quando uma voz rouca chamou:
- Olá de casa! olá! Podem me ajudar?
- Quem é a essa hora? Perguntou o senhor Kensuke meio retraído e abaixando a luz do lampião.
- Um peregrino procurando um canto para passar esta noite!
Com determinado cuidado abriu a porta, levantou o lampião conferindo o estranho e depois convidou-o a entrar. O vento agora soprava mais forte.
Era um homem de meia idade e com roupas bem simples carregando um alforje surrado feito de pano grosso. Tirou o chapéu curto e ainda se apoiando num bastão de bambu agradeceu a acolhida. Na cozinha avivaram o fogo quase borralho e serviram-no uma sopa quente e um chá de algumas folhas.
 Num cubículo contíguo onde costumavam guardar sementes e algumas ferramentas, um tatame estendido sobre palhas secas e um velho cobertor deram ao peregrino uma noite reparadora após um dia inteiro de caminhada!
Porém, o velho demorou a dormir. Já era hábito seu deitar-se e ficar um bom tempo recordando tudo o que acontecera durante o dia de caminhada. Os lugares; as pessoas; as paisagens, e tudo ele anotava, pois esses eram como argumentos que lhe inspiravam a escrever. Então ficava ruminando aquilo até que finalmente o sono lhe arrebatasse.
Amanheceu e o vento havia parado, porém, trouxe uma chuva muito forte. Uma chaleira fumegava sobre a chapa. Fazia frio lá fora e a cozinha era agora o lugar mais confortável da cabana. Mas, o peregrino estava mesmo muito preocupado com o fato de a chuva não parar porque isso retardaria a sua chegada ao destino.
Não demorou e a senhora Yumi trouxe uma bacia com água morna e duas toalhas. Enquanto enxugavam os rostos, conversavam:
- O senhor vai para onde? Perguntou o dono da casa.
- Para o templo da montanha visitar um grande amigo de infância. Mas acho que me perdi no caminho, por isso não consegui chegar ao albergue que fica no sopé dessa montanha. Respondeu ele olhando a chuva pela pequena janela entreaberta. E continuou: - Já há muitos anos renunciei à vida urbana. Prefiro andar pela vida junto à natureza buscando conhecimento e inspiração para escrever. Sem apegos sinto-me mais feliz.. Cansar destas viagens é bem melhor do  que se cansar da cidade.

Diante dos olhares do casal, um misto de espanto e curiosidade, o velho abriu seu alforje e de lá retirou uns papéis pardos e tinta além de uma pena e começou a rabiscar. E foi com apurada concentração que passou a escrever sem parar, como aquela chuva que caia, e isso aguçou ainda mais a curiosidade dos dois. “O que escrevia aquele homem com tanta dedicação?”
 - Deve ser alguém com muito conhecimento, viu como fala e como escreve? Sussurrou  a senhora. O marido apenas franziu a testa concordando.
A chuva deu uma amainada e dentro da cabana o que mais dava para ouvir além do crepitar da lenha, era o rangido da pena sobre o papel. O fogão já cozinhava o almoço mas o chá, esse  era imprescindível.:
- Senhor! O chá.
- Ah! sim. Obrigado. Disse ele à senhora agradecendo de forma respeitosa como sempre fazia.
A senhora Yumi então aproveitou esse momento para matar a sua curiosidade. Foi com muita discrição que  passou os olhos de relance sobre a mesinha e perguntou:
- Me desculpe senhor, são poemas?
- Sim, haicai, uma forma de poema. Conhece?... gosta de escrever também?
- Sim, gosto.
- Quer tentar o haicai?
- sim!
- Então observe, pois ele pode estar na janela, na chuva, aquecendo-se perto do fogão, na palha, na floresta..... é só abrir a sua alma. Explicou ele pausadamente com a paciência que lhe era peculiar.
Quando a chuva parou de vez, já era madrugada do outro dia. O céu amanhecera coalhado de estrelas. Nem parecia  que todo aquele aguaceiro havia caído.  Aromas agradáveis das folhagens e flores noturnas ainda vagavam pelo ar. Assim como de noite um pouco da luz do lampião  fugia por algumas frestas da cabana, de dia, logo de manhã parecia que  o sol  trazia tudo de volta e passando  pelas frestas se projetavam na tosca parede com imagens fantásticas, surreais. Ao mesmo tempo que  observava  essas  imagens o velho peregrino  também se preparava para partir. Em seu alforje, além dos papéis e tinta, iam também algumas   tangerinas e caquis para a viagem.
 Mas, foi o chá mais uma vez quem deu as honras. Servindo-lhe o chá da manhã e desta vez um pouco tímida, a senhora Yumi mostrou-lhe uns haicais que havia escrito a noite passada. O velho os examinou demoradamente. Depois, movendo as grossas sobrancelhas brancas, disse:
- A senhora, excelente Haijin!
A senhora Yumi não cabia de contentamento e orgulho. O senhor kensuke apenas a olhou por cima dos pequenos óculos e sugeriu para que o  peregrino ficasse mais um dia até que os caminhos estivessem secos. O velho agradeceu mais uma vez pela hospitalidade recebida, mas estava determinado e continuou:
- Bem! Agora tenho que ir, o sol logo  arde e a estrada deve estar morrendo de saudades deste velho andarilho.  Adeus minha gente, adeus.
E numa despedida mais de olhares e acenos, o peregrino fincou pé no caminho, agora com mais vigor.
Quando virou-se para olhar mais uma vez, a cabana já se perdera entre umas ramagens. Mesmo assim acenou levantando o seu bastão. No mais, somente o som da mata.
Depois da chuva a rotina voltara ao lugar, agora, acompanhada de um vazio. Porque aquele homem sábio na palavras ocupou  não somente o espaço da casa, mas, principalmente e para sempre, o coração da senhora Yumi e do senhor Kensuke.
Todavia mesmo em meio a esse sentimento a senhora Yumi teve uma ideia bem original. Em pequenas tabuletas feita de madeira ela passou a escrever seus haicais e os fincava junto às flores.
Os moradores que ali passavam, se já se maravilhavam com aquele jardim, agora tinham mais um motivo.
Conta-se caro leitor, que com o passar dos anos vários aldeões da redondeza aprenderam também a escrever haicais, graças  a um sábio poeta que por ali pernoitou e que nunca mais fora visto, e principalmente por causa do jardim da senhora Yumi.