quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Um Conto das Arábias

 

Um Conto das Arábias

 

 

                                        Capítulo I

 

Ainda bem jovem deixou seus pais pois resolvera tentar a vida em um outro lugar. Bagdá foi o seu destino. Abandonou Al-Fallujah, sua cidade natal e pegando a estrada até a metrópole, caminhou incansavelmente a pé por vários dias. Levava um cantil e um velho alforje contendo algo para comer, uma coberta e uma pequena flauta de madeira. Chamava-se Salém Namir

Finalmente chegou à Bagdá capital dos Califas. Assim que pisou em seus domínios, ficou maravilhado com as longas alamedas margeadas por belas Tamareiras que amenizavam o calor daqueles que por ali passavam. Além dos jardins bem cuidados também roubavam a sua atenção, a arquitetura dos  pomposos palácios e Suas Mesquitas.

Caminhava a esmo quando de repente viu-se no meio de uma (Suk) rua onde se localizam as tendas, bazares e lojas, como uma espécie de feira-livre muito agitada e nada organizada, onde se vendia  tudo o que se possa imaginar. O burburinho e os pregões dos mercadores o deixaram perplexo. Já presenciara algo semelhante, porém, nunca com aquela multidão.

Continuando a passos lentos por aquelas ruas estreitas, observou um menino maltrapilho e que parecia muito sagaz, furtando principalmente frutas das bancas que ficavam na rua. Apostava no vacilo do vendedor para subtraí-lo. Salém também estava com fome, porém preferia pedir. Mas as suas primeiras tentativas foram frustrantes. Continuou fazendo parte daquela multidão, quando de repente trombou com aquele menino que cabisbaixo se deliciava com o resultado do seu mais recente furto!  Para a sua surpresa, como se fosse algo destinado ele lhe ofereceu algumas daquelas frutas. Sentaram-se num recanto à sombra de uma enorme figueira. Seu nome era Iezid, um Bagdali  um pouco mais jovem que perambulava  nas feiras às vezes com pequenos trabalhos a troco de quase nada. Tentava sempre levar para casa alguma coisa afim de ajudar seus avós.

Após saborearem algumas doçuras Iezid propôs a Salém uma parceria. Enquanto um distraía o vendedor, o outro aplicaria o furto. A princípio o rapaz ficou aturdido com aquilo e recusou a oferta. Mas com o ardil do agora seu amigo e a fome que o afligia, e mesmo sabendo que se arriscava perder as mãos se fosse pego, aceitou a lida!

Porém na primeira investida não tiveram sorte. Na tentativa de roubarem um homem que se apoiava numa muleta, viram-se logo entre duas tempestades de gente. E aquelas pessoas iradas gritavam.:

__ Peguem os ladrões, peguem!!

Iezid, mais ladino, conhecedor dos atalhos partiu em fuga escapando dos perseguidores, porém o jovem Salém, inexperiente, foi preso. Amarraram seus pés e mãos, cobriram-lhe os olhos e o levaram até  um deserto e lá o deixaram à própria sorte. __ Que Allah lhe tenha compaixão, disse um daqueles que o trouxeram. O tropel dos cavalos se afastando foi o último som de algo vivente que ele ouviu. Com muito esforço e suor, conseguiu  afinal se desvencilhar das amarras.

A noite chegava, aterrorizante e silenciosa e percebeu ele que à medida que o sol se punha o ar ficava cada vez mais frio. Percebeu também que  abaixo da superfície a  areia ainda conservava  bastante calor. Então teve uma ideia! Começou a cavar uma espécie de berço para se beneficiar do calor retido. Soprava um vento! Sua primeira tentativa foi muito frustrante, pois deu em  uma superfície muito dura, uma rocha! Tentou mais um e somente no terceiro, conseguiu areia macia e ali cavou uns palmos. Enrolou-se  nos trapos que tinha e deitou-se olhando para o firmamento, única paisagem possível. No céu límpido entre outras, brilhava a inconfundível Al-Schira, nome dado pelos Árabes à estrela Sirius, alfa da “constelação cão maior” e com os olhos fixos na sua luminosidade, adormeceu.

O dia mal raiava, acordou num sobressalto e só então pode perceber de fato a intenção daqueles que o abandonaram ali naquele lugar. Longe das rotas das caravanas, sem água e comida, era impensável que sobrevivesse um ou dois dias. Entrou em desespero e disse a si mesmo. - “Antes tivessem cortado as minhas mãos, sofreria menos”.

Por todos os ângulos que olhasse a paisagem parecia a mesma para onde seguir? Mais uma vez a onda de desespero tomou conta de Salém quando notou que aquele mesmo sol vermelho já queimando o seu rosto, refletia milhares de minúsculos cristais no lugar onde à tarde/ noite tentara cavar em vão. Curioso aproximou-se e conferindo com detalhes, não teve dúvidas. Aquilo era chamado de ouro branco. Acabara de descobrir uma salina.

A certeza daquela descoberta, era a mesma de que se saísse dali vivo, íntegro, seria um homem rico. Acalmou-se pela primeira vez, apanhou a sua pequena flauta e tocou uma melodia que aprendera quando ainda era criança. Agora o silencio do deserto tinha uma companhia. Embalado pelo som que tirava, quase não percebeu uma voz que vinha , parecia, além de umas dunas. Parou e  atentou certificando de que não era um engano. Mais alguns segundos e ouviu com mais clareza:

__ Salém, Salém, Salém! Cadê você?

Assustado levantou-se e protegendo os olhos com as mãos, custou a acreditar. A pouca distância alguém montado descia uma pequena elevação.

__ Salém, Salém. Insistiu!

Para a sua felicidade e espanto era Iezid, o bagdali que sem intenção o colocara naquela situação. Vinha ao passo lento de um camelo magro e extenuado.

__ Por Allah, você está vivo!

__ Como me encontrou aqui, nesse deserto?

__ Você não está assim tão longe das rotas das caravanas. Ouvi quando eles falavam do lugar. suba aqui e veja.  

Cumprimentando efusivamente o amigo, perguntou:

__ Tem alguma coisa para comer e beber? Estou desde ontem quase a morrer de fome!

Um pouco de água e uns  pães amenizaram a situação. E enquanto faziam o desejum  Salém agradeceu mais uma vez o  amigo e  abraçando-o disse:

__ Fidelidade assim como essa, nunca encontrei em lugar nenhum e em agradecimento e confiança e por dever-lhe minha vida, vou te revelar uma coisa!

Caminharam alguns passos e:

__ Por Allah! Gritou Iezid  pulando de alegria! É sal e da melhor qualidade, eu acho. Agora você é um homem rico!

__ Quer ser meu sócio? Perguntou.

__ Se essa honra me for dada! – Mac Allah (Poderoso é Deus) Respondeu quase aos prantos.

Abrindo um surrado alforje Iezid lhe ofereceu uma peça de Fustan.

__ Mas isso é roupa de mulher, retrucou.

__ Coloque  sobre a cabeça, é para disfarçar. Passaremos pela cidade e aqueles  malucos ainda estão por lá, lembra? Vamos para a casa de meus avós.

__ Está bem caro amigo! Mas me responda uma pergunta: Onde você arranjou esse animal que ora nos suporta?

__ Digamos que peguei emprestado, respondeu sorrindo.

E assim, partiram os dois sobre o dorso daquele camelo magro e ainda extenuado.

  

 

                                               Capítulo – II


Já ao sol  a pino atravessando a cidade, deram com uma grande  comitiva. Eram homens trajando roupas  vistosas, algumas cobertas de coloridas pedrarias, cada qual em seu belo Jamal (camelo). Curioso, Salém perguntou do que se tratava:

E eram, o Califa e Beremiz, este, o famoso calculista, rodeados por seus guardas protetores.

__ Beremiz, o calculista! Interessante, a sua fama  também chegou lá em Al-Fallujah comentou brevemente.

E continuaram ao passo lento do velho camelo!

Chegando próximo ao destino saltaram e com uns tapinhas na perna do bicho, disse Iezid:

__ Vá, guerreiro! Vá para seu dono e diga a ele que agradecemos pelo empréstimo.....

 Caminhando por uma trilha chegaram a uma pequena vila onde se erguiam casas muito humildes.

__ Aquele é o meu avô, apontou para um velho sentado próximo à entrada de um casebre. Depois de uma doença, nunca mais ficou bom, não reconhece ninguém. Aquela é a minha vó. Ela é cega mas conhece cada palmo desse lugar. Completou.

Chegaram sorrateiros  porém a avó logo percebeu alguma coisa e perguntou:

__ É você não é? E onde você andou que sumiu logo cedo? E quem veio junto?

__ Um amigo que conheci na cidade. Vou ser o sócio dele vovó! Respondeu com ar de felicidade.

__ Falando sério, o senhor Faruk esteve aqui na parte da manhã e novamente você não estava, passei vergonha. Mas ele volta daqui uma semana. Concluiu enquanto preparava  a massa para os pães que ela vendia  ali mesmo.

Foram para um rancho contíguo onde havia uma tina com água para o banho. No percurso Salém percebeu que alguma coisa estava errada com o amigo e interferiu:

__ De repente parece que você ficou chateado, triste. Quem é esse senhor Faruk?

Foi num estalar de dedos que Iezid se atirou aos braços do amigo e caindo em prantos lhe revelou algo inusitado.:

__ Então você não é Iezid? E qual seu verdadeiro nome?

__ Leilá. Respondeu cobrindo o rosto com as mãos espalmadas.

Assim como Iezid se atirou em seus braços, Salém num instante se desvencilhou dela. E o silencio de alguns segundos pareceu de um século.

Na verdade, devido à pobreza em que viviam, Leilá fora há algum tempo prometida  a esse homem chamado Faruk. Agora era somente uma questão de tempo. Bastaria que ocorresse a primeira menstruação e a pobre pertenceria definitivamente à esse homem, que na verdade a compraria por uns míseros dinares. E era disfarçando-se de menino que planejava fugir de casa para sempre, livrando-se  desse momento tão doloroso.

Abismado e quase sem jeito, Salém pediu-lhe calma e disse:

__ Não se preocupe, somos sócios, lembra? Lhe dei a palavra. Amanhã trataremos disso com o Califa e esse senhor Faruk, nunca mais lhe pertubará! A calma voltara a reinar e com o consentimento da avó, o amigo pode ali pernoitar.

Ter uma audiência com o tal Califa era coisa quase impossível a curto prazo. Então tiveram uma ideia. Salém se colocaria como conhecido de Beremiz. Usaria o prestígio do calculista junto à corte e com um pouco de sorte, quem sabe conseguiria seu intento. E a sua astúcia fora coroada de êxito.

No dia marcado lá estava o jovem Salém caminhando pelos corredores do palácio, guiado por um escravo bastante solicito. Parecia um labirinto trabalhado com o mais puro mármore de várias nuances. Um belo jardim onde três jovens  cuidavam das flores ficava de fronte à longa janela do salão-mor do Califa.

___ Salã Aleikum! No que eu posso te ajudar, jovem?

Curioso foi, que após explanar sobre a pauta, que era o ponto principal, a conversa acabou se alongando para outros assuntos. E se estendeu tanto que só foi interrompida porque a voz do Muezim começava a ecoar pelos quatro cantos da cidade chamando os fiéis para a oração da tarde! E acrescentava em alto e bom som: __”Lembrai-vos de que tudo é pó, exceto Allah!”

Na manhã do dia seguinte, bem antes de o sol chegar, já estavam a caminho. Foi um longo e duro percurso. Finalmente lá estavam e para a surpresa de Salém  Beremiz fora designado para calcular a extensão da salina, além de testemunha para a elaboração de documento de posse, onde também seria feito os cálculos para as taxas devidas, posto que toda aquela extensão de terras pertencia ao próprio Califa. O que se apurou afinal, foi que se tratava de  uma reserva muito promissora.

 

 

                                         Capítulo - III

 

Não demorou e o resultado daquele bafejar de sorte, bambúrrio, como queiram, já o projetava como um importante homem de negócios. Com efeito transitava pelos ambientes mais sofisticados, junto ao Califa; o próprio Calculista; o Cheique;  Emir e importantes mercadores dentre outros.

Mas a afeição maior ele conseguiria do próprio Califa. Muito provavelmente porque ele havia há algum tempo perdido o seu primogênito, ainda muito jovem e a presença de Salém o reportava ao próprio filho. A amizade entre eles, parecia em dado momento,  coisa entre pai e filho.

Era comum em algumas noites, depois das orações, uma pequena reunião recreativa onde o jovem, agora, homem de negócios, já se apresentava como figura sempre presente principalmente na mesa de jogo. O Xantrange, uma  forma modificada do jogo de xadrez conhecida no ocidente. Ali o jovem também se destacava pois era um exímio enxadrista e firmava ainda mais o orgulho do Califa sobre ele.

Numa tarde a cidade apresentava um grande movimento, fora do que era comum. O centro, principalmente o Suque, estavam praticamente tomados por uma grande caravana vinda de Damasco. Era comum que duas ou três vezes por ano isso acontecesse. Traziam novidades que abasteciam também os mercadores locais.

Naquela tarde Salém e agora sua noiva Leilá caminhavam pela cidade à procura de artigos para o enxoval de casamento e por sorte por causa principalmente dos damascenos  que acabavam de chegar, encontraram tudo o que procuravam.

O ar estava impregnado   por agradável aromas de perfumes que se misturavam aos das especiarias. Enquanto isso os mercadores, apregoavam suas mercadorias com muito estilo numa algazarra sem par.

__ Este perfume  veio do Egito, igual ao usado pela rainha.......

__ Veja a qualidade e a beleza desta cortina, digna dos mais ricos palácios e o preço? Barato, barato!.............

__ Se interessou por este tapete jovem casal? Aproveita, preço de ocasião....

Depois de uma tarde cansativa de compras, Salém deixou a noiva em sua casa  e dirigiu-se para o seu próprio gabinete de negócios. Lá exausto demais jogou-se em um divã e  dormiu como uma pedra! Quando  acordou já era bem tarde da noite e uma lua cheia atravessava a sua janela. E antes que esfregasse os olhos para acordar de vez, alguém chamou pelo seu nome:

__ Salém, Salém! Cadê você?

Saiu do buraco de areia ainda enrolado no seu surrado cobertor, tendo os cabelos molhados pelo orvalho da madrugada e protegendo os olhos por causa do sol que já raiava, assombrou-se. Montado num velho camelo, era Iezid que desesperado perguntou:

__ Por Allah, você está bem meu amigo?

__ É você mesmo? Conferiu Salém com os olhos ainda sonolentos e alegrou-se. Tem alguma coisa para se beber e comer? Concluiu.

__ Trouxe pão e água, toma!

__ E como você me encontrou assim tão fácil?

__ Geralmente é para cá que mandam os pobres que vagam pela cidade. Logo imaginei... A trilha das caravanas não fica assim tão distante. Estamos pertinho do vilarejo onde eu moro com os meus avós. Suba, vamos para casa!

__ Espera um pouco!

__ O que foi?

__ Nada! - Ah! é uma longa história!

E assim partiram os dois em divertida conversa sobre o dorso do velho camelo!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

sábado, 13 de fevereiro de 2021

A Estátua de Sal

 

A Estátua de sal

 

 

Na distante ilha de Lesbos nasceu e viveu. Ali se transformou numa das mais famosas escultoras gregas! Era bela e jovem a ponto de provocar inveja entre as mulheres e admiração entre os homens.

Seu nome era Tessália e com o tempo acabou também se decepcionando com as mulheres por acha-las falsas, vulgares e por vezes infantis demais, pelo menos  com  aquelas  as quais  se relacionara até então. Desgostosa optou pelo celibato e assim foi por alguns anos da sua vida!

Apesar da solidão em que mergulhara nunca parou o seu trabalho de escultora.

Dentro  da técnica que criara, executava seus ensaios primeiro  em pedra de sal para somente depois em definitivo, esculpi-las em mármore.

Certo final de tarde após dias trabalhando num enorme bloco de sal teve uma visão incomum.   Ao terminar o ensaio uma linda jovem pôs - se à sua frente. Ali estava a perfeição das perfeições, pode-se assim dizer. Admirou-a por todos os ângulos e com muita convicção exclamou bem alto que ali se encontrava o seu ideal feminino. Foi então à primeira vista que se apaixonou por sua criação e deu-lhe rapidamente o nome de Leucádia.

A loucura então se apoderou dela. Foi tanta que não quis perder tempo. Apelou ao conselho implorando à Afrodite que fosse permitida à sua estátua o sopro da vida! Um privilégio raríssimo, já naquela época. E foram dias cruéis de espera. Após inúmeros julgamentos, Afrodite aceitou o pedido, porém lhe deixou também uns conselhos: “ Que não tardasse em passar do ensaio para o  mármore, assim, com segurança a sua criação seria para sempre a sua amada, a criatura dos seus sonhos.

Numa tarde cansada da lida e ansiosa por esperar, Tessália caiu num sono profundo. Mas não o bastante para perceber, lá pela madrugada, que alguma coisa excepcional atravessava o portal do seu aposento. A passos lentos viu a mais bela das silhuetas aproximar-se da cabeceira do seu divã. Espantada e quase incrédula, viu finalmente o seu ideal feminino, a paixão da  sua vida, que meio tímida cobria com as mãos o sexo e os seios. Era finalmente Leucádia em carne e osso, um ser humano como pedira à deusa Afrodite. Era da mesma altura da sua criadora, esbelta, rosto com uma simetria ímpar, pele clara como o mais fino sal do Mediterrâneo, olhos azuis como o Egeu e cabelos negros e encaracolados. Conferiram-se mutuamente e se abraçaram demoradamente. Tessália, derramando lágrimas de alegria ofereceu-lhe então uma vestimenta da moda, um Chiton e sandálias de couro.  A paixão se transformara num grande amor e por esse amor ela era capaz de tudo.

Estavam sempre juntas e reciprocamente se ajudavam até nas mais simples tarefas. Depois dessa feliz realidade, de forma definitiva, a também bela escultora sabedora que jamais repetiria essa proeza quando a trabalhasse no mármore, resolveu não arriscar e por nada arriscaria. Ignorou então os conselhos recebidos.

Numa tarde recebendo uma carta viajaram para Atenas. Foi a convite da academia de artes e ofícios. Lá também aproveitariam para celebrar os primeiros meses de união. A primeira boda.

O local de trabalho se encontrava fechada por um bom tempo. Depois do seu maravilhoso prêmio Tessália já não mais esculpia e os pedidos se avolumavam. O seu amor por Leucádia era o seu principal motivo de vida, parecia um vício, um ópio para a sua felicidade. Com isso foi deixando aos poucos o seu  trabalho para segundo plano.

Em Atenas no salão nobre, já na entrada, a beleza das duas mulheres era notada por todos os participantes.

Alguém numa roda de vinho em certo momento disse apontando discretamente para Tessália:--- Vejam senhores que maravilha de mulher, uma verdadeira beldade! Curvilínea, sorriso, andar, perfeição a toda prova, são dignos de um grande escultor, a natureza sem dúvidas.

-- Nasceu para ser uma bela estátua, uma deusa, disse outro.—Soube pela lista de convidados que seu nome é Leucádia e faz companhia  à não menos bela escultora Tessália de Lesbos. Concluiu.

No dia seguinte ao evento, sob um forte verão, lá estavam elas, unidas como sempre. Um passeio ao ar livre como era de costume. Foi num belo campo às margens do rio Cefiso em cujos remansos haviam nenúfares brancas e amarelas. Sobre uma  tapete com motivos florais espalharam frutas e odres de vinho. Riam e se amavam mordiscando uvas e Tâmaras e  entornando taças e taças da solene bebida.

E se amavam tanto quanto riam e bebiam, e os risos eram tantos e tão altos que reverberavam por todo o bosque ao redor. Então, já embriagados, se desnudaram e correram para o rio. Lançaram-se felizes num belo mergulho às águas refrescantes. Abraçaram-se e beijaram-se longamente quase imersos e foi em pleno êxtase que Tessália  percebeu que beijava e abraçava um corpo rígido e com gosto amargo. Ali fugindo de suas mãos  a sua doce Leucádia  se transformara na primitiva estátua de sal e rapidamente se diluía à mercê da correnteza do pequeno Cefiso. Gritando desesperadamente Tessália tentou em vão resgatar o seu amor, mas acabou ela também desaparecendo e seu corpo nunca foi encontrado!

 

 

 

Um conto de José Alberto Lopes. – fev. 2021

 

 

 

 


 

 


 

 

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

No tempo dos Bondes

 

      No tempo dos Bondes.

                [Uma Crônica]

 

 

      Uma parede esborcinada de uma antiga fábrica de acordeões era a paisagem permitida  pela única janela do seu quarto de pensão.

A cama era estreita e cheirava a mofo, mas  a comida era muito boa e as diárias eram módicas.

Quando chovia essa parede mais parecia uma grande tela surrealista. À noite, era como se olhasse para uma nesga de céu onde o criador se esquecera de colocar estrelas.

Depois de  seis dias sobre uma velha Remington e montanha de papéis, resolveu ele que no sétimo dia descansaria. Passear um pouco pela metrópole ajudaria a desopilar a cabeça e o corpo, pensou ele. E assim o fez.

Na manhã seguinte olhando por cima do pesado óculos, cumprimentou a dona  do recinto e saiu. Não era a mesma cidade de quarenta anos atrás, quando então se mudara para Curitiba. Caminhou minutos a fio numa espécie  de transe, mesmo com toda aquela aflição de uma cidade grande. Depois, ficou arredio como um cão perdido!

Parou no cruzamento de uma grande avenida que conhecera ainda acanhada. Ficou estático enquanto um filme em branco e preto rolava na tela  de sua mente. Um pedaço da história paulistana deslizando sobre trilhos polidos que sulcaram em tempos idos aquela mesma avenida.

Por ali corriam os bondes levando e trazendo proletários sobre o chamado trilhos do progresso.  A história de um tempo  em que os homens ainda  usavam chapéu e a névoa vezeira da tardinha dava à cidade um ar bucólico.

A história das fábricas com suas chaminés de tijolinhos vermelhos em cujos topos tremulavam diuturnamente longos penachos azuis, brancos ou negros.

Seus funcionários, homens e mulheres, rendidos pelas sirenes uníssonas, se espalhavam em ruidosas e apressadas  procissões. Ali, os bondes, energia limpa e baixo ruído iam e vinham apinhados e capitaneados por seus motorneiros devidamente e impecavelmente trajados, além de sempre solícitos.

O atrito das rodas sobre o aço e o (vrummmm) do gerador, acompanhavam as conversas e os risos dos passageiros.

Lentamente passavam as fachadas dos magazines, as luzes policrômicas dos néons pulsando freneticamente seus reclames. Os bilhares enfumaçados, gente indo, gente voltando...As cantinas típicas animadas por barítonos amadores. Casarões ricos, bem iluminados e cercados por verdadeiras muralhas com seus imensos portões de ferro-fundido. Jardins; cortiços; tinturarias; farmácias; confeitarias; as ruas calçadas com paralelepípedos polidos; além dos gasômetros  que subiam e desciam suas  tampas parecendo  imensas panelas escuras................

       O sinal fechou e abriu umas três vezes, até que de súbito ele fez um gesto involuntário como se estivesse saltando do estribo dum bonde em movimento.. Depois, finalmente atravessou a grande avenida, literalmente conduzido por uma multidão apressada e indiferente!




De JAL.- 2021

Misterioso...

 

Misterioso

 

 

Misterioso é o sono,

Em que se morre

Sem se ter morrido!

E até poder sonhar

Com pessoas e lugares

Que achamos ter conhecido.

 

Misterioso é encontrar

Infinitas estrelas, tanto no céu

como no infinito mar!

Misterioso é a lua

Sorrindo numa poça

Sem que eu a consiga apanhar!

 

Misterioso é o rubor

Em meu rosto.....

Ante ao teu corpo desnudo!

Misterioso é a Aurora Boreal

Escrevendo o teu nome

Lá no topo do mundo!

 

 

Mistérios sempre há de pintar por aí. [G.G.]

 


De JAL.

 

 

Pelas Ondas do Rádio

 

Pelas Ondas do Rádio

[uma crônica]

 

 

Tratava-se de um aparelho de rádio a válvula, um pouco mais moderno que o estilo “capelinha” que já perdia espaço para os formatos mais avançados. Mas em se tratando da tecnologia, em quase nada houve alteração! Se não me falha a memória, sua marca escrevia-se da seguinte forma: CHRISCO.

Havia em seu frontal superior direito o chamado – olho-mágico, de cor  esverdeada (bem viva) cujo brilho variava conforme a sintonia  da emissora que se procurava. Seu móvel chamava a atenção pelo esmero no acabamento. A madeira era de jacarandá e para conservá-la, era recomendável o uso do famoso óleo de peroba, aquele que também tem uma cabeça de índio.

Era um rádio-receptor multifaixas que necessitava de eficiente terra e principalmente uma antena externa para uma boa recepção. À noite  essa recepção, principalmente as ondas curtas [Short-wave] era maravilhosa, devido a ausência dos raios solares que interferiam nas ondas de rádio, assim diziam os entendidos.

Em seu dial em esmerado silk-screen, lia-se em cores variadas as marcações de ondas médias, curtas, tropicais. Ainda não havia a frequência modulada.(FM).

Somente meu pai manuseava o tal receptor de rádio. E para garantir  a integridade física e funcional do aparelho, ele o colocava sobre uma prateleira bem alta, fora do nosso alcance. Porém nos sábados e domingos, para nosso deleite, o rádio ficava sobre a mesa de jantar e lá ficávamos a ouvir dentre outras estações, a BBC de Londres, a Voz da América, emissoras  Suecas, Alemães, Chinesas e até Coreanas. Mas o que em mim chamava mais atenção, era a traseira do receptor onde pela tampa de proteção através das janelinhas de ventilação, posto que aparelhos valvulados apresentavam super aquecimento, eu viajava num mundo fantástico: Achava que cada uma daquelas válvulas com seu brilho avermelhado fosse uma espécie de arranha-céu e seu conjunto, uma pequena cidade habitada pelos artistas que a gente ouvia através das ondas do rádio.

E lá ficava eu a imaginar em qual deles eu poderia encontrar: Virgínia de Moraes, Manoel da Nóbrega, Sônia Ribeiro, Sarita Campos, Vicente Leporace, Ronald Golias, Alvarenga e Ranchinho...... entre muitos outros.

Um dia, chegou a televisão e ela me mostrou em tempo quase todos aqueles artistas que eram do rádio e que migraram, muitos, para a TV. Nunca mais olhei para a traseira de um rádio, imaginando aquelas coisas. Mas, a mágica do rádio nunca terminou para mim. A maravilha de ouvir rádio continua  impregnado  na minha alma. Posto que quando escrevo e estudo e mesmo em outros afazeres, estou sempre em companhia  dessa invenção maravilhosa que é o RÁDIO!

 

De JAL. - 2021

JOCASTA


 

Venha o! doce Jocasta.!

Não te preocupes, pois,

Não serei teu incesto:

Sou Ópide e não Édipo

 

Enigmas decifrei

Esfinges venci...

Abra a tua janela.!

Deixe ao menos teu perfume

Provocar-me frenesis.

 

A noite passa depressa,

Ligeira como um colibri.

Os acordes somem no ar,

Da lira, a corda se quebra...!

 

Logo a neve cobrirá a serra,

O enigma pode ser indecifrável

E a esfinge poderá nos devorar!

 

Abra a tua vidraça!

O! minha doce Jocasta.!


De JAL. 2021