Um Conto das Arábias
Capítulo
I
Ainda
bem jovem deixou seus pais pois resolvera tentar a vida em um outro lugar.
Bagdá foi o seu destino. Abandonou Al-Fallujah, sua cidade natal e pegando a
estrada até a metrópole, caminhou incansavelmente a pé por vários dias. Levava um
cantil e um velho alforje contendo algo para comer, uma coberta e uma pequena
flauta de madeira. Chamava-se Salém Namir
Finalmente
chegou à Bagdá capital dos Califas. Assim que pisou em seus domínios, ficou
maravilhado com as longas alamedas margeadas por belas Tamareiras que
amenizavam o calor daqueles que por ali passavam. Além dos jardins bem cuidados
também roubavam a sua atenção, a arquitetura dos pomposos palácios e Suas Mesquitas.
Caminhava
a esmo quando de repente viu-se no meio de uma (Suk) rua onde se localizam as
tendas, bazares e lojas, como uma espécie de feira-livre muito agitada e nada
organizada, onde se vendia tudo o que se
possa imaginar. O burburinho e os pregões dos mercadores o deixaram perplexo.
Já presenciara algo semelhante, porém, nunca com aquela multidão.
Continuando
a passos lentos por aquelas ruas estreitas, observou um menino maltrapilho e
que parecia muito sagaz, furtando principalmente frutas das bancas que ficavam
na rua. Apostava no vacilo do vendedor para subtraí-lo. Salém também estava com
fome, porém preferia pedir. Mas as suas primeiras tentativas foram frustrantes.
Continuou fazendo parte daquela multidão, quando de repente trombou com aquele
menino que cabisbaixo se deliciava com o resultado do seu mais recente furto! Para a sua surpresa, como se fosse algo
destinado ele lhe ofereceu algumas daquelas frutas. Sentaram-se num recanto à
sombra de uma enorme figueira. Seu nome era Iezid, um Bagdali um pouco mais jovem que perambulava nas feiras às vezes com pequenos trabalhos a
troco de quase nada. Tentava sempre levar para casa alguma coisa afim de ajudar
seus avós.
Após
saborearem algumas doçuras Iezid propôs a Salém uma parceria. Enquanto um
distraía o vendedor, o outro aplicaria o furto. A princípio o rapaz ficou
aturdido com aquilo e recusou a oferta. Mas com o ardil do agora seu amigo e a
fome que o afligia, e mesmo sabendo que se arriscava perder as mãos se fosse pego,
aceitou a lida!
Porém
na primeira investida não tiveram sorte. Na tentativa de roubarem um homem que
se apoiava numa muleta, viram-se logo entre duas tempestades de gente. E aquelas
pessoas iradas gritavam.:
__
Peguem os ladrões, peguem!!
Iezid,
mais ladino, conhecedor dos atalhos partiu em fuga escapando dos perseguidores,
porém o jovem Salém, inexperiente, foi preso. Amarraram seus pés e mãos,
cobriram-lhe os olhos e o levaram até um
deserto e lá o deixaram à própria sorte. __ Que Allah lhe tenha compaixão, disse
um daqueles que o trouxeram. O tropel dos cavalos se afastando foi o último som
de algo vivente que ele ouviu. Com muito esforço e suor, conseguiu afinal se desvencilhar das amarras.
A
noite chegava, aterrorizante e silenciosa e percebeu ele que à medida que o sol
se punha o ar ficava cada vez mais frio. Percebeu também que abaixo da superfície a areia ainda conservava bastante calor. Então teve uma ideia! Começou
a cavar uma espécie de berço para se beneficiar do calor retido. Soprava um
vento! Sua primeira tentativa foi muito frustrante, pois deu em uma superfície muito dura, uma rocha! Tentou mais
um e somente no terceiro, conseguiu areia macia e ali cavou uns palmos. Enrolou-se
nos trapos que tinha e deitou-se olhando
para o firmamento, única paisagem possível. No céu límpido entre outras,
brilhava a inconfundível Al-Schira, nome dado pelos Árabes à estrela Sirius, alfa
da “constelação cão maior” e com os olhos fixos na sua luminosidade, adormeceu.
O dia mal raiava, acordou num sobressalto e só
então pode perceber de fato a intenção daqueles que o abandonaram ali naquele
lugar. Longe das rotas das caravanas, sem água e comida, era impensável que
sobrevivesse um ou dois dias. Entrou em desespero e disse a si mesmo. - “Antes
tivessem cortado as minhas mãos, sofreria menos”.
Por todos os ângulos que olhasse a paisagem
parecia a mesma para onde seguir? Mais uma vez a onda de desespero tomou conta
de Salém quando notou que aquele mesmo sol vermelho já queimando o seu rosto,
refletia milhares de minúsculos cristais no lugar onde à tarde/ noite tentara
cavar em vão. Curioso aproximou-se e conferindo com detalhes, não teve dúvidas.
Aquilo era chamado de ouro branco. Acabara de descobrir uma salina.
A certeza daquela descoberta, era a mesma de
que se saísse dali vivo, íntegro, seria um homem rico. Acalmou-se pela primeira
vez, apanhou a sua pequena flauta e tocou uma melodia que aprendera quando
ainda era criança. Agora o silencio do deserto tinha uma companhia. Embalado pelo
som que tirava, quase não percebeu uma voz que vinha , parecia, além de umas
dunas. Parou e atentou certificando de
que não era um engano. Mais alguns segundos e ouviu com mais clareza:
__ Salém, Salém, Salém! Cadê você?
Assustado levantou-se e protegendo os olhos com
as mãos, custou a acreditar. A pouca distância alguém montado descia uma pequena
elevação.
__ Salém, Salém. Insistiu!
Para a sua felicidade e espanto era Iezid, o
bagdali que sem intenção o colocara naquela situação. Vinha ao passo lento de
um camelo magro e extenuado.
__ Por Allah, você está vivo!
__ Como me encontrou aqui, nesse deserto?
__ Você não está assim tão longe das rotas das caravanas. Ouvi quando eles falavam do lugar. suba aqui e veja.
Cumprimentando efusivamente o amigo, perguntou:
__ Tem alguma coisa para comer e beber? Estou desde
ontem quase a morrer de fome!
Um pouco de água e uns pães amenizaram a situação. E enquanto faziam
o desejum Salém agradeceu mais uma vez o
amigo e
abraçando-o disse:
__ Fidelidade assim como essa, nunca encontrei em
lugar nenhum e em agradecimento e confiança e por dever-lhe minha vida, vou te
revelar uma coisa!
Caminharam alguns passos e:
__ Por Allah! Gritou Iezid pulando de alegria! É sal e da melhor
qualidade, eu acho. Agora você é um homem rico!
__ Quer ser meu sócio? Perguntou.
__ Se essa honra me for dada! – Mac Allah
(Poderoso é Deus) Respondeu quase aos prantos.
Abrindo um surrado alforje Iezid lhe ofereceu
uma peça de Fustan.
__ Mas isso é roupa de mulher, retrucou.
__ Coloque
sobre a cabeça, é para disfarçar. Passaremos pela cidade e aqueles malucos ainda estão por lá, lembra? Vamos para
a casa de meus avós.
__ Está bem caro amigo! Mas me responda uma
pergunta: Onde você arranjou esse animal que ora nos suporta?
__ Digamos que peguei emprestado, respondeu
sorrindo.
E assim, partiram os dois sobre o dorso daquele
camelo magro e ainda extenuado.
Capítulo – II
Já ao sol
a pino atravessando a cidade, deram com uma grande comitiva. Eram homens trajando roupas vistosas, algumas cobertas de coloridas pedrarias,
cada qual em seu belo Jamal (camelo). Curioso, Salém perguntou do que se
tratava:
E eram, o Califa e Beremiz,
este, o famoso calculista, rodeados por seus guardas protetores.
__ Beremiz, o calculista! Interessante, a sua
fama também chegou lá em Al-Fallujah
comentou brevemente.
E continuaram ao passo lento do velho camelo!
Chegando próximo ao destino saltaram e com uns
tapinhas na perna do bicho, disse Iezid:
__ Vá, guerreiro! Vá para seu dono e diga a ele
que agradecemos pelo empréstimo.....
Caminhando por uma trilha chegaram a uma pequena vila onde se erguiam casas muito humildes.
__ Aquele é o meu avô, apontou para um
velho sentado próximo à entrada de um casebre. Depois de uma doença, nunca mais
ficou bom, não reconhece ninguém. Aquela é a minha vó. Ela é cega mas conhece cada
palmo desse lugar. Completou.
Chegaram sorrateiros porém a avó logo percebeu alguma coisa e
perguntou:
__ É você não é? E onde você andou que sumiu
logo cedo? E quem veio junto?
__ Um amigo que conheci na cidade. Vou ser o
sócio dele vovó! Respondeu com ar de felicidade.
__ Falando sério, o senhor Faruk esteve aqui na
parte da manhã e novamente você não estava, passei vergonha. Mas ele volta
daqui uma semana. Concluiu enquanto preparava
a massa para os pães que ela vendia
ali mesmo.
Foram para um rancho contíguo onde havia uma
tina com água para o banho. No percurso Salém percebeu que alguma coisa estava
errada com o amigo e interferiu:
__ De repente parece que você ficou chateado,
triste. Quem é esse senhor Faruk?
Foi num estalar de dedos que Iezid se atirou aos
braços do amigo e caindo em prantos lhe revelou algo inusitado.:
__ Então você não é Iezid? E qual seu
verdadeiro nome?
__ Leilá. Respondeu cobrindo o rosto com as
mãos espalmadas.
Assim como Iezid se atirou em seus braços,
Salém num instante se desvencilhou dela. E o silencio de alguns segundos
pareceu de um século.
Na verdade, devido à pobreza em que viviam,
Leilá fora há algum tempo prometida a
esse homem chamado Faruk. Agora era somente uma questão de tempo. Bastaria que
ocorresse a primeira menstruação e a pobre pertenceria definitivamente à esse
homem, que na verdade a compraria por uns míseros dinares. E era disfarçando-se
de menino que planejava fugir de casa para sempre, livrando-se desse momento tão doloroso.
Abismado e quase sem jeito, Salém pediu-lhe
calma e disse:
__ Não se preocupe, somos sócios, lembra? Lhe dei
a palavra. Amanhã trataremos disso com o Califa e esse senhor Faruk, nunca mais
lhe pertubará! A calma voltara a reinar e com o consentimento da avó, o amigo
pode ali pernoitar.
Ter uma audiência com o tal Califa era
coisa quase impossível a curto prazo. Então tiveram uma ideia. Salém se
colocaria como conhecido de Beremiz. Usaria o prestígio do calculista junto à
corte e com um pouco de sorte, quem sabe conseguiria seu intento. E a sua
astúcia fora coroada de êxito.
No dia marcado lá estava o jovem Salém caminhando
pelos corredores do palácio, guiado por um escravo bastante solicito. Parecia
um labirinto trabalhado com o mais puro mármore de várias nuances. Um belo
jardim onde três jovens cuidavam das
flores ficava de fronte à longa janela do salão-mor do Califa.
___ Salã Aleikum! No que eu posso te ajudar,
jovem?
Curioso foi, que após explanar sobre a pauta, que era o ponto principal, a conversa acabou se alongando para outros assuntos. E se estendeu
tanto que só foi interrompida porque a voz do Muezim começava a ecoar pelos
quatro cantos da cidade chamando os fiéis para a oração da tarde! E
acrescentava em alto e bom som: __”Lembrai-vos de que tudo é pó, exceto Allah!”
Na manhã do dia seguinte, bem antes de o sol
chegar, já estavam a caminho. Foi um longo e duro percurso. Finalmente lá
estavam e para a surpresa de Salém Beremiz
fora designado para calcular a extensão da salina, além de testemunha para a
elaboração de documento de posse, onde também seria feito os cálculos para as
taxas devidas, posto que toda aquela extensão de terras pertencia ao próprio Califa.
O que se apurou afinal, foi que se tratava de uma reserva muito promissora.
Capítulo - III
Não demorou e o resultado daquele bafejar de
sorte, bambúrrio, como queiram, já o projetava como um importante homem de negócios.
Com efeito transitava pelos ambientes mais sofisticados, junto ao Califa; o
próprio Calculista; o Cheique; Emir e importantes mercadores dentre outros.
Mas a afeição maior ele conseguiria do próprio
Califa. Muito provavelmente porque ele havia há algum tempo perdido o
seu primogênito, ainda muito jovem e a presença de Salém o reportava ao próprio
filho. A amizade entre eles, parecia em dado momento, coisa entre pai e filho.
Era comum em algumas noites, depois das
orações, uma pequena reunião recreativa onde o jovem, agora, homem de negócios,
já se apresentava como figura sempre presente principalmente na mesa de jogo. O
Xantrange, uma forma modificada do jogo
de xadrez conhecida no ocidente. Ali o jovem também se destacava pois era um
exímio enxadrista e firmava ainda mais o orgulho do Califa sobre ele.
Numa tarde a cidade apresentava um grande
movimento, fora do que era comum. O centro, principalmente o Suque, estavam
praticamente tomados por uma grande caravana vinda de Damasco. Era comum que
duas ou três vezes por ano isso acontecesse. Traziam novidades que abasteciam
também os mercadores locais.
Naquela tarde Salém e agora sua noiva Leilá
caminhavam pela cidade à procura de artigos para o enxoval de casamento e por
sorte por causa principalmente dos damascenos que acabavam de chegar, encontraram tudo o que
procuravam.
O ar estava impregnado por agradável aromas de perfumes que se
misturavam aos das especiarias. Enquanto isso os mercadores, apregoavam suas
mercadorias com muito estilo numa algazarra sem par.
__ Este perfume
veio do Egito, igual ao usado pela rainha.......
__ Veja a qualidade e a beleza desta cortina,
digna dos mais ricos palácios e o preço? Barato, barato!.............
__ Se interessou por este tapete jovem casal? Aproveita, preço de ocasião....
Depois de uma tarde cansativa de compras, Salém
deixou a noiva em sua casa e dirigiu-se
para o seu próprio gabinete de negócios. Lá exausto demais jogou-se em um divã e dormiu como uma pedra! Quando acordou já era bem tarde da noite e uma lua
cheia atravessava a sua janela. E antes que esfregasse os olhos para acordar de
vez, alguém chamou pelo seu nome:
__ Salém, Salém! Cadê você?
Saiu do buraco de areia ainda enrolado no seu
surrado cobertor, tendo os cabelos molhados pelo orvalho da madrugada e protegendo
os olhos por causa do sol que já raiava, assombrou-se. Montado num velho
camelo, era Iezid que desesperado perguntou:
__ Por Allah, você está bem meu amigo?
__ É você mesmo? Conferiu Salém com os olhos
ainda sonolentos e alegrou-se. Tem alguma coisa para se beber e comer?
Concluiu.
__ Trouxe pão e água, toma!
__ E como você me encontrou assim tão fácil?
__ Geralmente é para cá que mandam os pobres
que vagam pela cidade. Logo imaginei... A trilha das caravanas não fica assim
tão distante. Estamos pertinho do vilarejo onde eu moro com os meus avós. Suba,
vamos para casa!
__ Espera um pouco!
__ O que foi?
__ Nada! - Ah! é uma longa história!
E assim partiram os dois em divertida conversa
sobre o dorso do velho camelo!