sábado, 1 de dezembro de 2018

Somente Contos


O Vulto 



       A marujada estava animada. Afinal, depois de três meses a bordo estava na hora de tirar a “maresia”. Era um termo usado por muitos marujos quando desembarcavam.
       Desceram a avenida do porto e logo caíram na Rua General Câmara. Era um bando de aves brancas e barulhentas. Aportaram na Fragata Estela e estariam livres até aquela meia noite.
       Emerique era um marinheiro de primeira viagem, por isso sentia-se ainda um pouco deslocado dos demais.
        Filho de mãe solteira tinha mais dois irmãos pequenos. Trabalho por lá era raro.  Pra escola de padres não quis, não tinha vocação.
        Vivia desde pequeno perambulando pelas praias de Pernambuco catando uma coisa aqui e acolá ou ajudando a desmalhar redes de pesca em troca de minguados peixes. Na maioria das vezes não passava de xepeiro e se o seu embornal voltasse vazio, ainda enfrentava a ignorância da mãe.
        Romão era um velho marujo com muitos anos de bordo que sempre quando ancorava naquele cais caminhava por aquela beira de mangue, um dos lugares mais miseráveis que conhecera em sua vida. Lá as palafitas emergiam do lodo podre e se multiplicavam formando caóticos emaranhados de casebres. Mas era para lá que sempre ia, como aves migratórias que sempre retornam. Certa vez voltando àquele cais encontrou o menino todo enfarruscado vadiando por lá. Abordou-o e encasquetou nele ingressar na  marinha.
        Como já tinha idade alistou-se e como praça zarpou para a sua primeira viagem. A marinha então foi a sua tábua de salvação e também de sua família.

        Era ainda um rapazola quase imberbe. Dividia por coincidência a acanhada cabina da fragata com Romão, aquele mesmo que o trouxera para a marinha.  Romão era muito vaidoso. Barba e cabelo sempre bem aparados, uniforme impecável e sapatos brilhando.  Quando sorria, de sua boca faiscava alguns gramas  de ouro. Talvez por isso vivesse sempre sorrindo. Ali os dois pouco conversavam. Na verdade era Romão quem respeitava o silêncio de Emerique.
        Quando chegaram, a rua já fervilhava de gente. Aquela procissão diferente diriam alguns, profana, caminhava lentamente num ir e vir constante... Nos portais daqueles velhos casarões ou nas calçadas mal cuidadas e mal iluminadas, jovens e velhas disputavam possíveis clientes. Muitos anjos caídos naufragados naquele pântano mórbido sem nenhuma possibilidade de volta iam cedo mortificando corpo e alma sob tetos sórdidos...
        Lá o grupo se dividiu. Romão ofereceu um trago a Emerique. Era um bar bem típico daquela rua. Dividiam o espaço com bêbados; traficantes; estróinas e claro, com muitas prostitutas e rufiões. Depois de uns goles de cerveja, Romão quebrou finalmente  o silêncio do jovem marinheiro e perguntou-lhe:
        - Como foi de viagem?
        - Um pouco de enjoo. Respondeu o jovem.
        - É normal, com o tempo se acostuma.
        - Aqui é Santos? O senhor conhece?
        - Sim, nasci no morro do Marapé, mas conheço também todos os portos e cidades marítimas do Brasil. Gabou-se o velho marujo apontando com um cigarro.
        - Então conhece bem este lugar? Parece perigoso!
        - Com a palma da minha mão. Mas não se preocupe! Aliás, vou te levar até a casa de uma velha amiga, a Dolores. Lá tem lindas raparigas, você vai gostar.
        Nem bem terminaram de beber a segunda partiram alegres rumo à casa de Dolores.  O jovem rapaz saiu pisando em ovos...
        Lá não era diferente de outros lugares. Uma multidão de gente se comprimia na balbúrdia que se formava nas inclinadas escadarias. Muitos já tentando ali mesmo as preliminares. Mas para ser exato, uma diferença havia. A diferença era que as “meninas” de Dolores eram selecionadas. Eram jovens e mais atraentes.
        Uma ampla sala com luzes estroboscópicas que antecedia aos nichos era uma espécie de portal de passagem à venérea relação.  Como objetos elas eram escolhidas a dedo.
        Mal chegaram à recepção, Romão e Dolores foram logo se abraçando. Ele lhe trouxe umas recordações lá do Maranhão. Eram uns bibelôs.  Ela os admirou, fez inveja a uma amiga e agradeceu sorrindo.
        Ansioso e sem perder tempo Romão sussurrou no ouvido da caftina avisando que trazia ali um noviço. Mas antes mesmo que o apresentasse, Emerique já se engraçara com uma das protegidas da casa. Não demorou e subiram para um dos nichos.
        - Esse sabe escolher! Disse a mulher dando um sinal de positivo.
        Emerique parecia nunca ter estado com uma mulher naquela situação.
        Ela era uma jovem muito bonita, esguia, corpo impecável. Tinha longos cabelos escuros que  caíam sobre seus ombros desnudos. Os olhos eram esmeraldinos e tristes e os lábios exageradamente banhados de carmim. Pele da cor de canela e usava um perfume suave. Dizia chamar-se Valquíria e ofereceu a ele o seu corpo, os seus préstimos, como convinha a sua lida.
         A princípio o rapaz foi acometido por um tremor incontrolável. Fato que comprovava que era virgem de mulheres. Daí para frente o que se passou ali somente eles e a lua promíscua pela fresta da janela poderiam dizer.
        O dia seguinte era sexta-feira-santa e Dolores respeitava muito os dias santificados. Por isso após meia noite a casa seria fechada reabrindo somente no sábado de aleluia. E assim as horas foram passando, passando, sem que Romão e Dolores percebessem.  Estavam numa saleta onde cosiam um bom papo. Ruminavam o passado e bebericavam o presente. Do futuro quase nada disseram. Riam. Mas o bate papo não distraía a alegre senhora, que mantinha os ouvidos na conversa e olhos ágeis na clientela. De súbito o velho cuco na parede pertubou-os mais uma vez. Os ponteiros agora faziam o pequeno leque das onze da noite. Apavorado, Romão saiu na carreira procurando por Emerique. Já era hora de ir e onde está o rapaz?
        Tomou o estreito corredor e bateu suavemente em algumas portas.
        - A número cinco. Apontou a caftina deixando cair sobre um prato, cinzas do seu cigarro.
        - E aí marinheiro, tudo bem? Temos que zarpar! Gritou o homem.
        - Sim senhor! Eu já estava de saída. Respondeu timidamente.
        - Bom, o mar nos espera!
        Emerique caminhava e não desgrudava os olhos da porta entreaberta de onde saíra e Romão não perdeu tempo:
        - O que foi agora garoto?
- Acho que estou gostando de alguém...
        - Dela?
        - Sim!
        - É só uma prostituta...!
        - Mas ela até me beijou!
        - E daí? Não vê que isso é cegueira que logo passa?
        - Mas senti algo diferente por ela e ela também por mim, ela disse! Respondeu quase em sussurro.
         -Veja! Tudo o que ela fez ou deixou de fazer foi a troco de dinheiro, foi pago, não há nenhum sentimento!
         - Não é assim! Retrucou o jovem agora com um tom mais ríspido.
        Pagaram o que consumiram, horas, cigarros e bebidas e se despediram de Dolores. Desceram apressadamente aquela escadaria ainda repleta e logo ganharam a rua. Uma brisa que soprava amenizava o calor que fazia.
        No caminho para o porto Romão insistiu em dar conselhos ao garoto que já não os aceitava como no início.
        - Olha aqui, se você quer dar cabeçada pode ir, mas antes escuta esse velho marinheiro tão experiente quanto as pedras deste cais: “Existe amor roubado, mas não existe amor comprado, você quer ficar com uma prostituta não é? Vá em frente, vá, mas lembre-se: O gato perde o pelo mas não perde o pulo, entendeu?”
        - Não!
        Já quase perdendo a calma, disse-lhe.
        - Com certeza nem houve prazer por parte dela!
        - Não acredito não senhor!  Resmungou.
        - Acredite! Retrucou o velho marinheiro. E continuou – Conheço essas paradas, essas coisas entende? Antes de você nascer, eu já era veterano nisso! Gabou-se mais uma vez.
       - Não sei por que o senhor insiste em me dar conselhos. Não é o meu pai. Na verdade, nunca tive um!
        Um silêncio cortou abruptamente a noite. Romão retardou um pouco os passos, enquanto Emerique acelerava os seus.
        Dali até o portaló do navio permaneceram mudos. Emerique estava chateado e Romão furioso.
        Por fim todos a bordo. Iniciou-se então o árduo trabalho quase que totalmente braçal. Quando a última amarra foi desatada, já passava da meia noite e de longe era possível ouvir o toc, toc da pesada âncora sendo recolhida, enquanto um vento bonançoso soprava parecendo avivar o braseiro das luzes da cidade.
        Nas horas que se seguiram, Emerique e Romão continuaram sem dar um pio. O rapaz estava passado, estava em pé a muque e o seu coração mais parecia uma velha amarra descochada.
        O navio deu o primeiro apito e vagarosamente foi se afastando do cais à custa de dois rebocadores. Agora Emerique já havia se recolhido à sua cabina enquanto Romão ainda permanecia lá fora.
        Estava ainda na proa puxando um cigarro quando avistou um pequeno vulto que com insistência acenava. A silhueta era de uma mulher esguia, cabelos soltos... O velho marinheiro então quedou-se por um tempo, ficou pensativo. O silêncio era profundo, exceto pelo pulsar forte do seu próprio coração e que parecia acompanhar o ritmo dos pistões do velho Diesel. O seu pensamento parecia  fazer uma ligeira busca no passado. Porém, outro apito quebrou essa profundidade silenciosa...
      A fragata ganhava velocidade ansiando pelo mar aberto enquanto Romão relutava em olhar para aquele vulto que acenava de forma frenética. Quando olhou de fato, a escuridão, com a sua bocarra enorme a tudo já havia engolido...



(Pseudônimo : Alazão)

nov. de 2018





O jardim da senhora Sueko


Depois que aquela velha casa passou a ser habitada, tudo por ali ficou mais alegre e  vistoso.
O senhor Kensuke e a senhora Sueko viviam felizes tirando da terra o que a terra lhes devolvia graças ao trabalho árduo e dedicado.
Além do pequeno pomar e das hortaliças a senhora mantinha também um lindo jardim que ficava em frente à casa.
Todos que por ali passavam ficavam maravilhados não somente com  o colorido das flores como também pelo capricho com que ela se dedicava aos bonsais e também aos arranjos florais.
Uma cerca baixa feita de bambu onde se agarravam democraticamente um pé de bucha; uma aboboreira e flores de ipomeia, circundava a gleba onde moravam.
Chegara a noite e na aldeia tudo era silêncio, exceto pelos coaxares que vinham de uma plantação de arroz logo abaixo. Um vento insistente parecia anunciar mudanças  no tempo.
O casal já se preparava para se recolher quando uma voz rouca chamou:
- Olá de casa! olá! Podem me ajudar?
- Quem é a essa hora? Perguntou o senhor Kensuke meio retraído e abaixando a luz do lampião.
- Um peregrino procurando um canto para passar esta noite!
Com determinado cuidado abriu a porta, levantou o lampião conferindo o estranho e depois convidou-o a entrar. O vento agora soprava mais forte.
Era um homem de meia idade e com roupas bem simples carregando um alforje surrado feito de pano grosso. Tirou o chapéu curto e ainda se apoiando num bastão de bambu agradeceu a acolhida. Na cozinha avivaram o fogo quase borralho e serviram-no uma sopa quente e um chá preto.
 Num cubículo contíguo onde costumavam guardar sementes e algumas ferramentas, um tatame estendido sobre palhas secas e um velho cobertor deram ao peregrino uma noite reparadora após um dia inteiro de caminhada!
Porém, o velho demorou a dormir. Já era hábito seu deitar-se e ficar um bom tempo recordando tudo o que acontecera durante o dia de caminhada. Os lugares; as pessoas; as paisagens, e tudo ele anotava, pois esses eram os argumentos que lhe inspiravam a escrever. Então ficava ruminando aquilo até que finalmente o sono lhe arrebatasse.
Amanheceu e o vento havia parado, porém trouxe uma chuva muito forte. Uma chaleira fumegava sobre a chapa. Fazia frio lá fora e a cozinha era agora o lugar mais confortável da casa. Mas, o peregrino estava mesmo muito preocupado com o fato de a chuva não parar porque isso retardaria a sua chegada ao destino.
Não demorou e a senhora Sueko trouxe uma bacia com água morna e duas toalhas. Enquanto enxugavam os rostos, conversavam:
- O senhor vai para onde? Perguntou o dono da casa.
- Para o templo da montanha visitar um grande amigo de infância. Mas acho que me perdi no caminho, por isso não consegui chegar ao albergue que fica no sopé dessa montanha. Respondeu ele olhando a chuva pela pequena janela entreaberta. E continuou: - Já há muitos anos renunciei à vida urbana. Prefiro andar pela vida junto à natureza buscando conhecimento e inspiração para escrever. Sem apegos sinto-me mais feliz.. Cansar destas viagens é bem mais agradável do  que se cansar da cidade.

Diante dos olhares do casal, um misto de espanto e curiosidade, o velho abriu seu alforje e de lá retirou uns papéis pardos, uma pena e começou a rabiscar. E foi com apurada concentração que passou a escrever sem parar, como aquela chuva que caia, e isso aguçou ainda mais a curiosidade dos dois. “O que escrevia aquele homem com tanta dedicação e assim tão pensativo?”
 - Deve ser alguém com muito conhecimento, viu como fala e como escreve? Sussurrou  a senhora. O marido apenas franziu a testa concordando.
A chuva deu uma amainada e dentro da casa o que mais dava para ouvir além do crepitar da lenha era o rangido da pena sobre o papel. O fogão já cozinhava o almoço mas o chá, esse  era imprescindível.:
- Senhor! O chá.
- Ah! sim. Obrigado. Disse ele à senhora agradecendo de forma respeitosa como sempre fazia.
A senhora Sueko então aproveitou esse momento para matar a sua curiosidade. Foi com muita discrição que  passou os olhos de relance sobre a mesinha e perguntou:
- Me desculpe senhor, são poemas?
- Sim, haicais, uma forma de poema. Conhece?... gosta de escrever também?
- Sim, gosto.
- Quer tentar o haicai?
- sim!
 - Então observe, pois ele pode estar na janela, na chuva, aquecendo-se perto do fogão, na palha, na floresta..... é só abrir a sua alma. Explicou ele pausadamente com a paciência que lhe era peculiar.
Quando a chuva parou de vez, já era madrugada do outro dia. O céu amanhecera coalhado de estrelas. Nem parecia  que todo aquele aguaceiro havia caído.  Aromas agradáveis das folhagens e flores noturnas ainda vagavam pelo ar. Assim como de noite um pouco da luz do lampião  fugia por algumas frestas da cabana, de dia, logo de manhã parecia que  o sol  trazia tudo de volta e passando  pelas frestas se projetavam na tosca parede  imagens fantásticas, surreais. Ao mesmo tempo que  observava  essas  imagens o velho peregrino  também se preparava para partir. Em seu alforje além dos papéis, iam também algumas   tangerinas e caquis para a viagem.
 Mas, foi o chá mais uma vez quem deu as honras. Servindo-lhe o chá da manhã e desta vez um pouco tímida, a senhora Sueko mostrou-lhe uns haicais que havia escrito a noite passada. O velho os examinou demoradamente. Depois, movendo as grossas sobrancelhas brancas, disse:
- A senhora, excelente haijin!
A senhora Sueko não cabia de contentamento e orgulho. O senhor Kensuke apenas a olhou por cima dos pequenos óculos e sugeriu para que o  peregrino ficasse mais um dia até que os caminhos estivessem secos. O velho agradeceu mais uma vez pela hospitalidade recebida, mas estava determinado e continuou:
- Bem! Agora tenho que ir, o sol logo arde e a estrada deve estar morrendo de saudades deste velho andarilho.  Adeus minha gente, adeus.
E numa despedida mais de olhares e acenos, o peregrino fincou pé no caminho.
Quando virou-se para olhar mais uma vez, a velha casa já se perdera entre umas ramagens. Mesmo assim acenou levantando o seu bastão. No mais, somente o som da mata.
Depois da chuva a rotina voltara ao lugar, agora acompanhada de um vazio. Porque aquele homem sábio nas palavras ocupou  não somente o espaço da casa por alguns dias mas, principalmente e para sempre, o coração do velho casal.
Todavia mesmo em meio a esse sentimento a senhora  teve uma ideia bem original. Em pequenas tabuletas feita de madeira ela passou a escrever seus haicais e os fincava junto às flores.
Os moradores que ali passavam, se já se maravilhavam com aquele jardim, agora tinham mais um motivo.
Conta-se caro leitor, que com o passar dos anos vários aldeões da redondeza aprenderam também a escrever haicais, graças  a um sábio poeta que por ali pernoitou e que nunca mais fora visto, e principalmente por causa do jardim da senhora Sueko.





Pseudônimo : Quasar
ago. de 2018





                                            O Derradeiro Porto

                                                                                                           
 O saguão de espera para embarque estava fervilhando de gente. Aquela seria a primeira viagem de Júlio e a primeira de navio. O jovem estreava como caixeiro viajante. Estava ansioso.
O transatlântico Carl Hoepcke era um navio luxuoso, raro em portos nacionais. De origem alemã, construído em 1.926 fora adquirido juntamente com seu irmão gêmeo, o Anna, para compor  a frota duma promissora empresa de navegação de cabotagem instalada em Florianópolis Santa Catarina.
Possuía duas classes. Tinha ótimos camarotes, salão de festa, mesas com cadeiras giratórias, cozinha sofisticada, além de louças e pratarias importadas. Também era provido de rádio para navegação e até um local reservado para fumantes, também com belas e confortáveis poltronas e divãs. Um piano animava os passageiros e era tocado pelo telegrafista  do navio.
No saguão o burburinho continuava misturado aos rangidos dos bondes que passavam ali na avenida Portuária.
Um casal  chegara  atrasado e foi logo perguntando sobre a partida  do navio. Teve sorte pois o atraso já somava uns trinta minutos.
Era um homem  de meia idade  e impecavelmente trajado. Acompanhava-o uma linda jovem também muito elegante. Ela usava um chapéu com longas plumas, bolsa e sapatos da mesma cor do vestido e muitas joias.
O homem acomodou-se numa poltrona  próximo de Júlio, acendeu um legítimo Havana e  começou a folhear o matutino. De seus dedos coruscavam grandes anéis de ouro com pedrarias em ônix e rubis. Do seu lado, a moça permanecia  em pé. Isso deixou Júlio intrigado.__Que homem Grosso! Pensou. Indignado levantou-se e cedeu  o seu lugar a ela.
Nesse simples gesto percebeu o quanto o mundo  tornava-se cada vez mais pequeno. Era sem dúvidas, Madeleine, não tinha como não a reconhecer. Não! não era ilusão da fumaça desgarrada do seu cigarro! Era ela.
__ Meu Deus! é você? Disse ele surpreso quase murmurando.
__Júlio.....!! gaguejou a  moça!    
Na adolescência foram namorados. Trocaram juras e mais juras  ainda no tempo de colégio. Porém a vida os  separara. Enquanto se ensaiava um diálogo, por sobre o jornal aquele homem  os observava com um olhar nada amistoso.
A moça franziu o canto da boca, agradeceu friamente e sentou-se dirigindo ao chão  um olhar submisso. Nas entrelinhas, Júlio entendera o que  se passava. Engoliu seco e afastou-se do local  dirigindo-se ao bar onde pediu um café, papel e lápis. Enquanto bebericava escrevia algo  apressadamente. Seu peito ressoava forte! Depois retornou para onde estava o casal e se apresentou ao homem  oferecendo-lhe  seu cartão de referência. O brutamonte o ignorou abrindo as duas páginas do jornal conferindo as cotações do dia. Mesmo assim correndo o risco conseguiu entregar à Madeleine o seu bilhete. Ela o agasalhou fechando  a mão e  o guardou furtivamente entre os seios.
Finalmente todos puderam se dirigir  ao portaló do navio e em seus camarotes se acomodaram.
Então um apito rouco estremeceu o ar, o cais e o capitão respirou  aliviado!
O mar estava calmo naquela manhã, sol entre nuvens e um noroeste fraco.
Logo o luxuoso navio deslizava preguiçosamente deixando para trás o seu rastro n'água, uma negra cabeleira de fumaça e  a velha Santos dos Andradas.
Mal guardara a sua mala retornou ao convés e com olhos aquilinos varreu   cada espaço na esperança de ver novamente Madeleine. Mas não foi o que aconteceu e quando já voltava descendo, um funcionário do navio o chamou discretamente:
__Senhor Júlio, senhor Júlio! pediram que lhe entregasse isso aqui!  Disse passando-lhe rapidamente  um papel dobrado em dois.
__Onde ela está? Interpelou o rapaz. Mas o funcionário se retirou sem nada mais dizer.
Ansioso ele correu até a sua cabine. Era uma pequena carta assinada com a letra M. A bela cursiva   sacramentava o que Júlio não queria acreditar. Estavam casados e fazia pouco tempo e ela não era feliz.....Ele era um homem influente no meio político e também tinha negócios na Bolsa do café. O casamento acontecera  por imposição das  duas famílias. Porém, ela nunca o esquecera, o amava e isso abriu ao rapaz uma réstia de luz....
Suspirando releu a carta e depois com os olhos marejados  jogou-se sobre a impecável cama e dormiu. Não demorou acordou de um sonho estranho, um pesadelo. Sonhara que Madeleine era uma das camareiras do navio, que aparecendo em  seu dormitório pedia desesperadamente que ele deixasse  o local. Acordou puxando o ar e com o coração bombeando forte. Lavou o rosto sacou  um cigarro e logo estava recomposto. Mas, já  havia perdido a vontade de viajar e  sua ansiedade  transformara-se   em tristeza.
__Por que, Madeleine? Por quê?
Subiu e caminhou até a amurada do navio  e lá debruçado com as mãos entrelaçadas, ficou por longo tempo olhando para  um ponto  fixo no espaço. Depois tirou do bolso a carta e leu mais uma vez.   Sua cabeça latejava! A perdera  novamente....Mas os dias felizes  que tiveram, ainda viajavam no convés da sua memória... Porém isso não bastava..
Então ali quase em transe foi repentinamente despertado  pelo alarme intermitente que tocava.:
__Incêndio  na casa de máquinas, organizem-se  em fila indiana e dirijam-se até a área dos botes salva-vidas. Sigam o líder, gritou o imediato com voz firme através de uma grande corneta.
Eram 168  almas a bordo, entre tripulantes e passageiros. No desespero alguém lançou-se ao mar e infelizmente nunca  foi encontrado.
E num ato impensado Júlio quebrara as regras. Correndo na contramão desceu até o seu camarote. Apanhava seus pertences quando uma camareira o surpreendeu. Energicamente pediu-lhe que  abandonasse  a  área rapidamente e seguisse  os  demais. Pôde levar apenas a pequena valise. Saiu trôpego ganhando finalmente o convés. Acomodado em  seu escaler ficou a matutar sobre  a cena do pesadelo e  a cena real que a pouco vivenciara...e se perguntava por Madeleine!
Era manhã do dia 27 de setembro de 1.956, quando há uns 29 quilômetros  de Santos ocorrera o acidente que só não  se transformou em  tragédia, graças ao navio Inglês  Norseman da WT e  do outro navio, o Itaquatiá da CNNC que navegando próximo  a área  prontamente realizaram o resgate de todos. Júlio, por mais que tentasse não conseguiu mais avistar a garota. Chateado dali mesmo retornou pra casa.
Desespero por desespero o capitão e alguns tripulantes tentaram uma última e arriscada manobra para salvar o  navio do incêndio que ainda o consumia. Arrastaram-no com o auxílio de um rebocador e o imergiram propositalmente e de forma parcial no estuário Conceiçãozinha. Após debelada as chamas, bem que o Carl Hoepcke  se negara  a flutuar. Depois de várias tentativas foi finalmente rebocado para o seu porto de origem.
Porém o orgulho, principalmente dos Florianopolitanos  estava ferido. O então glamouroso  navio já não era o mesmo. Chamuscado, sem a chaminé e  movendo-se não por moto próprio deixou seus admiradores consternados. Mesmo assim o receberam como um herói que retornava da guerra. A ponte Hercílio Luz estava tomada de gente naquele dia e o aplaudiram quando ele a cruzou.
Mas o destino do Carl Hoepcke estava decretado! No estaleiro Arataca ferindo mais uma vez o orgulho da sua gente, o então luxuoso navio de passageiro foi transformado em navio cargueiro.
Dai para frente nunca mais tiveram notícias  dele. O máximo que se soube  é que fora rebatizado com outro nome. Assim como Júlio também nunca mais teve notícias  de Madeleine.
Como cargueiro manteve a sua dignidade cortando as águas  costeiras do país transportando  carvão, açúcar,  madeira...dentre outras mercadorias.
Caro leitor, essa história bem que poderia terminar aqui. Júlio já parecia ter virado para sempre aquela página distante. Porém, num dia quase final de fevereiro, como era  hábito saiu para a sua caminhada matinal pela orla marítima de Santos. Sair do canal 3 e chegar  ao canal 6 era uma boa puxada. O sol ainda era tímido e o ar estava fresco depois da chuva da madrugada. Foi pela areia.
O imenso mar o acompanhava a estibordo, mas foi à sua proa  ao longe que uma cena insólita aos poucos se descortinava . Caminhou mais um estirão e.. Era um navio encalhado nas areias de  Santos. Aproximou-se e viu que se chamava Recreio. Conferiu-o sem muito interesse e dali retornou, agora, sob as sombras  das velhas amendoeiras.
Algum tempo depois lendo um artigo num jornal da cidade, muitas recordações vieram à tona!
Aquele navio chamado Recreio, tratava-se na verdade do antigo Carl Hoepcke que depois de cargueiro ainda serviu como boate flutuante e que ficava ancorado na praia do Góes em Santos.
Aconteceu assim:
“Era madrugada do dia 28 de fevereiro de 1.971 quando aquele navio sentiu descochar as suas amarras. Nem a pesada âncora deu conta, uma tremenda tempestade o arrastara em portentosos vagalhões arremessando-o à praia.
Amanheceu e um gigante monumento de aço com mais de 62 metros de comprimento estava lá há uns 100 metros  da  avenida  aprumado sobre  a  areia como se pedisse socorro. Logo aquela fortuita coisa digere a atenção de centenas de pessoas que correm até o local, espantadas e curiosas.
Depois de intermináveis discussões burocráticas a sorte estava lançada. Numa tarde vieram uns homens e a bico de maçarico o retalharam  como boi no matadouro. somente lhe pouparam o leme, que ainda hoje encontra-se guardado  em algum armazém do  porto, o restante virou sucata barata.
É possível ainda hoje na maré-baixa, ver partes grandes do seu casco que jazem nas escuras areias  daquela ponta de praia.”
Esse artigo, esse acontecimento deixou Júlio mais uma vez triste e saudoso. No dia seguinte saiu logo cedo e dirigiu-se ao local do naufrágio. Era inverno a praia estava  praticamente deserta, as amendoeiras estavam desnudas e o vento cortava de  frio.  Era baixa-mar, então ele pode ver resquícios do velho navio. Quedou-se por minutos..
Depois, num ato solene reduziu a pedaços aquela mesma carta de Madeleine que guardara  por longos quinze anos e os atirou sobre o casco parcialmente exumado.
Emocionado deu as costas e caminhou pela areia sem olhar para trás quase a pisar nas mesmas pegadas que o trouxeram até ali desaparecendo aos poucos em meio à névoa. E  eram  aqueles pedaços tão pequeninos  que  as gaivotas confusas se engalfinhavam numa disputa como se  aquilo fosse migalhas atiradas.



(Pseudônimo: Alazão) - 
 nov. de 2018





A Geada


Apanhou a velha bengala de cabo de osso e seu cachimbo. Solicitou três dos seus  funcionários e rumaram para o campo afim de  contabilizar os possíveis estragos causados pela geada. Saíram emplumados de agasalhos, mesmo assim batendo o queixo e os  cambitos.
Nem aquela pedra de anil que as lavadeiras usavam para alvejar as roupas, era tão azul quanto o céu daquela manhã. A temperatura estava muito baixa, coisa de trincar os ossos. O  ar parecia parado. O sol estava anêmico...
O pasto era uma vastidão branca. Assim como os telhados, o capô do velho Ford e as cercas. Até a superfície dum bebedouro parecia coberto por   um grande vidro baço. Pandora, com certeza não poupara nem um pouco quando abriram-lhe a caixa.
O senhor Hernandez tinha muito orgulho da fazenda Esplanada. Fora formada aos poucos e a custa de muitas dificuldades. Ia de um morro ao outro e fugia à vista o seu comprimento. Mesmo assim o velho fazendeiro  carregava uma ponta  de mágoa quanto aos seus dois filhos. Nenhum deles se inclinara a ajudá-lo na lida daquelas terras. Eram formados em outras atividades e preferiram trabalhar em empreendimentos próprios. Muitas vezes a memória do velho Hernandez era como uma gaveta desarrumada e fisicamente sem dúvidas, ele já se apresentava como uma antiga roupa surrada. Por isso carregava uma profunda preocupação quanto ao futuro da Esplanada. Todavia agora era de  se notar que o fazendeiro  procurava influenciar o neto Pedrinho  que passava férias na fazenda. Pelo menos, curiosidade o menino demonstrava ter e andava pra cima e pra baixo enrabichado às calças do avô.
__ Caiu uma geada daquelas, não é  vovô? Perguntou o menino esfregando as mãos.
__ Meu filho! Teria caído se fosse neve! Geada não cai do céu. É a  temperatura muito baixa que acaba congelando toda a umidade da superfície. Corrigiu o velho homem explicando com muita paciência e naturalidade tendo total atenção do menino.
Parecendo chaminés que  caminhavam continuaram até um ponto alto donde era possível avistar um mar de cafés alinhados  impecavelmente e estáticos como guerreiros de terracota.  Desceram para uma inspeção mais detalhada.
Após longo e exaustivo exame exclamou aliviado o velho fazendeiro:
__ Graças a Deus! Desta vez a geada foi nossa camarada. Um ou outro pé pouco queimado e só, pouca coisa mesmo! Sorriu. E continuou: __ Sabe! Além de matar, a geada é capaz de causar falências e grandes prejuízos até à economia  dum país, embora eu entenda que os credores, aqueles  que  sugam a  não poder  mais são os piores... Desta vez nos safamos, mas enquanto durar o inverno corremos perigo. Tomara que não, mas é o caso de que a segunda é sempre a mais forte!
 Completou  apertando o fumo no seu  velho cachimbo!
De fato caro leitor, muitos  credores inescrupulosos querem somente a prata em suas  mãos. Vivem na verdade da especulação, nada produzem. Ou paga-se a exorbitância dos juros ou perde-se os bens, as terras... É assim que funciona! É possível que alguns deles nem saibam exatamente o que  é geada ou seca no campo ou mesmo uma enxada, ou coisa do gênero. E o café que tomam, acho, pensam que   já nasce moído e torrado. Veja se  pode isso?
Voltaram para casa, agora pisando o gelo  derretido que  aos  poucos revelava o estrago no capinzal. O verde viçoso do dia anterior estava tisnado, como se um fogo invisível passasse por ali. Chegaram e patos e  galinhas  já faziam algazarras a bicarem um a um o milho atirado. No enorme fogão as panelas já começavam a fumegar.
Finalmente podiam agora menos preocupados, tomar o café. Ter todo o resto do dia para descansar e prosear, como gostava de fazer.
Então ele resolveu contar ao neto uma história, a origem daquela fazenda e do cafezal:
Ainda  roendo um pedaço de pão Pedrinho se alinhou  à cadeira de balanço do avô e ouviu com atenção:
         _ Éramos jovens e isso faz muito tempo, bem antes que um outro tipo de  geada tomasse em definitivo os  meus  cabelos. Sorriu meneando a cabeça e continuou: Isso aqui era apenas um sítio. Mas quero falar  da geada propriamente dita, a mais forte da região até hoje e olha que  não falo da geada negra, a mais devastadora.! Nosso pai, filho de imigrantes espanhóis, além de alguns cereais cultivava também um modesto cafezal que supria  o nosso  consumo e ainda rendia uns bons  trocados. Perto disso aqui era uma moita de  café, mas dava gosto ver as floradas e as cerejas maduras de cafés  que adornavam a paisagem. Até que ela chegou e cobriu quase tudo. Essas paragens mais pareciam aqueles cartões de natal lá da Europa. Não sobrou nada!
__ Nada vovô?
__ Quase nada! Pensamos em destruir tudo queimando ou arrancando pela  raiz. Mas, chateados e com dívidas até o pescoço abandonamos aquela área. Todavia  passados quase três anos resolvemos um belo dia caminhar por lá. Ai aconteceu. Os olhos do meu pai encheram-se de  luz, pois pelas mãos restauradoras da natureza, o que restara  do cafezal condenado e abandonado por nós, havia não só resistido como estava nevado, sim, nevado, mas de flores, muitas flores. Até mesmo o capim que normalmente cresce rapidamente nos carreiros parecia ter respeitado aquela ação da natureza, não cresceu quase nada. "Um milagre" gritou meu pai erguendo as mãos  para o céu. Confiante disso resolvemos então refazer o cafezal, completar as falhas que haviam e também ampliar a plantação a partir dali, pois no mercado, o café estava muito valioso. Eliminamos as voçorocas e corrigimos este solo vermelho cor de telha! O resultado   é o que você acabou  de ver!
__ Puxa vovô! Que história linda dá  até um livro!
__ Você escreve? Que tal "A geada" como título? Sugeriu  sorrindo."

Pois bem! Na fazenda a prosa se arrastara por  toda a tarde e chegara à noite. Isso ajudou ao fazendeiro esquecer por  algumas horas o problema que martelava em sua cabeça.
A venda daquela safra  já estimada daria um respiro, quitaria as dívidas com alguns credores e ainda  lhe proporcionaria um bom lucro. Mas, tudo isso dependeria da natureza. Até aquecer o ar com fogueiras espalhadas por  todo o cafezal foi cogitado, porém logo desistiram da ideia.
O céu daquela noite estava ironicamente belo. Arqueado sobre  as planícies, mostrava-se totalmente limpo só empoeirado de estrelas e adornado por uma sorridente lua cheia que prateava até onde a vista conseguisse alcançar. Céu limpo e a temperatura baixando gradativamente pintava um quadro não promissor e muito preocupante para o fazendeiro quanto a formação  de geada.
O senhor Hernandez deitou-se mas não conseguia dormir. A sua preocupação vencera o cansaço. Sabia da fereza com que a natureza muitas vezes é capaz e ficou a cismar.
__ Durma meu velho. Seja o que Deus quiser!... Disse vovó Aurora quase sussurrando e apagando a luz principal. O homem respondeu com um longo muxoxo e virou-se de lado.
Enquanto isso pela janela do quarto de hóspedes o menino Pedrinho, deslumbrado e despreocupado contemplava a vastidão daquele  céu, uma espécie de magia, coisa  que  jamais vira na cidade.


 (Pseudônimo: Alazão)

 nov. de 2018



A MESMA PAISAGEM

       Ah! Aquela gente. Conheci muito aquela gente. Gente brava do sertão, gente fiel às coisas lá do céu, sempre cumpridora das suas promessas, embora também muitas vezes vivendo de promessas vãs.
      Gente que embora baldadas todas as esperanças, mesmo assim se mantinham serenas na luta repetindo palavras de resignação.  Resignação que muitas vezes era sinônimo de êxodo!
        Nessa altura os providos de asas já haviam arribado. A roça não vingara, o umbuzeiro definhava aos poucos. Somente o xiquexique ainda resistia parecendo desafiar o sol inclemente com seus agudos espinhos e suas flores vivazes. Os sons dos chocalhos nos  animais, assim como os aboios pelas caatingas, há muito tempo já não se ouviam.
       Foram tempos de secas terríveis. Do quê valeram as coivaras se tudo se resumia afinal, numa queimada só? O lugar tornara-se inóspito e o solo estéril, como um planetoide perdido e hostil, sendo bombardeado por cargas e cargas de raios flamejantes. Um planetoide habitado por sertanejos, que por mais bravos que fossem, num momento, tinham que desistir.
       A família de Moisés foi uma das últimas a partir. Do pouco que tinham, pouca coisa eles levavam, mas a esperança não era pouca.      Apenas se retiravam como um regimento se retira estrategicamente para depois em favoráveis condições, promover o contra-ataque colocando o inimigo à sua mercê. Retornariam assim que o verde retornasse por aquele sertão que ora deixavam pela segunda vez.
       Antes da partida, vovô Venâncio, num de seus momentos de lucidez, insistiu para que levassem também um pedaço de tição que se afigurava a uma imagem, que acreditava fosse de uma santa... Aquela imagem tosca esculpida pelo fogo era o arauto das boas novas que haveriam de vir. Assim acreditava o velho senhor. Sua vontade foi respeitada, embora contrariasse a Moisés, homem há muito tempo descrente das coisas da igreja, não das coisas do céu.
       Partiram antes de o sol chegar. Na boleia da velha carroça se acomodavam Maria, grávida de quatro meses e Venâncio seu sogro. O menino João acompanhava o pai marchando com suas franciscanas sobre aquele chão esturricado e poeirento.
       O céu era de um azul vivo e limpo, só perturbado por nuvens negras movendo-se mansamente. Nuvens carniceiras se equilibrando no ar quente que sobe, com seus olhos aguçados, e girando em grande círculo só aguardavam a hora e vez... Aliás, as únicas providas de asas que não arribaram.
       Passaram por leitos secos de ribeirões, por glebas abandonadas e por várias carcaças de animais que visto de longe mais pareciam quilhas expostas de antigas embarcações.
       Após um dia de viagem aportaram num pobre vilarejo. Depois de tanto tempo se alimentando basicamente de jacuba (água misturada com farinha de mandioca e açúcar) experimentaram o luxo de um naco de pão.
       - Estão indo pra onde? Perguntou o vendeiro.
       - Pra capital. Respondeu Moisés ainda mastigando.
       - Mais uma semana fecho aqui e também vou embora, se não a gente também morre feito gado no campo. Disse.
       - É, essa é a pior que já vi por essas bandas. A última chuva que caiu faz quase um ano, e só serviu pra engabelar. Nem deu pra molhar  as cacimbas. Estendeu-se Moisés.
       - É verdade, nem São José ta dando jeito. Mas se Deus quiser, as coisas melhoram. Amenizou o vendeiro.
        - Tomara! Concluiu Moisés pagando a conta.
       Naquela noite ficaram por ali mesmo. Moisés desatou a mula da carroça dando-lhe um fôlego, pois no dia seguinte atravessariam o pior trecho até a cidade mais próxima.
       Sob um céu empoeirado de estrelas, dormiram. Menos Moisés que passou a noite toda em vigília, com a alma amargurada e os olhos brilhantes como aquelas estrelas.
        No dia seguinte, antes que a barra do horizonte sangrasse, partiram.
       O chão rachado parecia um estranho mosaico, mas lá em cima, o céu com sua imponência azul, continuava com aquelas nuvens negras girando, girando. A marcha prosseguia árdua, cansativa, constante.    Somente o reboar dos cascos naquele chão duro quebrava aquele silêncio, além dos redemoinhos que, de vez em quando atravessavam o caminho que seguiam. Girando e assoviando, pareciam entes zombeteiros com suas bocarras assoprando as coisas do chão.
       Na tardinha quando o sol poente espichava as sombras pelo chão, após terem caminhado algumas léguas, a velha mula deu sinal de fadiga.    Extenuado, o pobre animal dobrou os joelhos. Moisés e o filho João tentaram debalde levantá-la. Com a boca branca de espuma e os olhos vidrados ela deu um breve suspiro e morreu. Era sem dúvida mais um banquete para aquelas famigeradas nuvens lá em cima.
       Jogados então à sorte, permaneceram por um bom tempo ali na margem da estrada.
       Maria, como era de costume, assim que pressentiu a tardinha, agarrou a rezar. E rezava todas as rezas que aprendera desde menina e o que aprendera não era pouco. Seu Venâncio permanecia estático, sem atinar em nada. Por sua vez, Moisés sentindo-se incomodado caminhou uns dez passos para frente e sentou-se sobre uma grande pedra e lá permaneceu quase imóvel como se fizesse parte da mesma até o término da ladainha. João o acompanhou.
       O sol insistia com seus últimos raios quando um caminhão levando algumas famílias apareceu em meio a uma densa poeira. Por sorte se dirigia para o mesmo destino. Embarcaram.
       A imensa serra ficando para trás, já se apequenava no horizonte.   Mais parecia um risco azul-escuro já quase consumido pela distância e o negrume da noite. O ronco luxuoso do motor e os sacolejos constantes induziram ao sono aquele homem alquebrado, abichornado. Moisés sonhava com um lugar onde os liquens cobriam eternamente as pedras.   Onde um simples golpe de enxada liberava o cheiro fértil de um chão úmido, e as veredas perenes trazendo abundância e vida para todos.
       Porém, a freada abrupta do caminhão, cortara-lhe o fluxo que alimentava aquele sonho sonhado! Chegaram. A realidade era amarga, seca, empoeirada. Cheia de cansaço e dúvidas.
       Era uma cidade pequena, que embora também sofresse as consequências da seca, ainda assim resistia.
       Aquela noite passaram sob a marquise de uma acanhada estação rodoviária. No dia seguinte condoído com aquela situação, um conterrâneo dividiu a própria casa com eles. Embora agradecido pela ajuda daquele Cirineu moderno, Moisés sentia-se humilhado. Seu orgulho de homem acostumado com a lida no campo estava ferido. Para ele, um homem sem teto e trabalho valia menos que uma folha que se desprende de uma árvore. Então, possuído por uma ira desmedida apoderou-se da primeira coisa que viu à sua frente. O santo do pau queimado. Sem que ninguém notasse atirou-o no mato que havia do outro lado da rua e blasfemou muito!
       Na tarde daquele dia seu Venâncio, saindo momentaneamente do estado de ausência, deu por falta do seu objeto santo e ficou nervoso.
       - No desembarque do caminhão deve ter sido extraviado. Disse  Moisés sem hesitar olhando para o infinito. Em poucos minutos o velho voltara à sua normalidade e a história do objeto santo foi esquecida.
       Passado uma semana, a preocupação de todos agora, era conseguir dinheiro para a passagem que faltava. Trabalho era difícil, e o ônibus que seguiria para a capital partiria dali três dias.
       Então resolveram abrir uma cabaça que muito pesava e que o velho guardara por muitos anos, com muito esmero e ciúmes.  Aquilo era um segredo enorme para todos, menos para João. Aproveitando o estado de ausência do velho apoderaram-se do objeto.
       Assim que a entornaram, uma espessa entranha metálica saltou do bojo escorrendo pelo chão batido. Eram moedas, sim, muitas. Uma alegria então percorreu a face de todos. Porém aquele metal escurecido e barulhento, já não tinha mais valor de troca. Já estava fora de circulação há muito tempo. Decepcionado e nervoso, Moisés saiu para fumar enquanto sua mulher e o filho devolviam aquelas inúteis moedas para o improvisado cofre.
       Mas o espírito do velho, parecia querer desistir de seguir a  viagem. No dia seguinte aconteceu um corre-corre. O velho Venâncio sofrera outro mal súbito.
       - Doutor por aqui? Só uma vez por mês, e quando vem! Disse um morador. E concluiu – melhor procurar o seu Caculé, o raizeiro daqui.   Esse já curou muita gente com suas garrafadas.
       - Onde? Perguntou Moisés com o rosto franzido de sol.
       - Meia hora a pé por aquele caminho, indicou o homem com a ponta do cachimbo.
       Agradecendo, Moisés e João saíram apressados.
Andaram um bom pedaço quando deram com uma multidão em frente a um casebre.
       -Caculé, o raizeiro? Perguntou Moisés ofegante.
       - Não! Na quinta casa descendo.  Disse uma mulher.
       - E o que é isso aqui? Inquiriu.
       - Milagres! Responderam três ao mesmo tempo.
       Explicaram-lhe que uma santa de madeira fora encontrada num lugar ali perto, e trazida para casa começou a realizar milagres. Muitos milagres.
       Então curioso, resolveu ele atestar isso de perto.
       Com muito custo conseguiram chegar até uma tosca janela que dava para o único cômodo da casa. Então ficaram perplexos ao verem o motivo real daquela epifania que alvoroçava toda aquela pobre gente.
       - Olha lá pai, aquilo não é a santa do vovô?
       De início o homem ficou reticente, depois bradou para que todos ouvissem.
       - Pois é sim, aquele pedaço de tição que mal cozinhava o feijão, agora faz milagres! E saiu balançando a cabeça e se acotovelando naquela multidão pobre e carente até ganhar a rua.
       A sua perplexidade só não foi maior, porque não vira o que seu filho João presenciara. As pessoas pagavam com o que podiam, para chegar perto da tal divindade... Não que a dona da casa exigisse, mas as promessas de milagres eram tentadoras.
       Quando retornaram trazendo a garrafa prescrita, encontraram Maria aos prantos, nervosa.
       O velho não resistira. Consolando um ao outro, fizeram a única coisa que podiam. Sua marcha pela terra findara.  Envolto num morim puído o seu corpo entregue ao chão, logo se integraria àquele pó vermelho que há muito tempo também não recebia o afago da chuva.    Nem padre havia naquele momento para encomendar a alma daquele pobre homem. Disseram que estava num almoço lá na casa de certo coronel. Sem lápide, apenas uma pequena cruz marcada com um número, indicava o local.
       Com a ausência do velho Venâncio, ironicamente o dinheiro que possuíam foi a conta exata para comprarem três passagens.
       Consternados, finalmente partiram. Para trás, deixavam uma significativa parte da vida, e  levavam consigo muitas lembranças. Para o futuro, mesmo sabendo das dificuldades, o sertanejo carregava muita esperança. No ônibus indo para a capital a marcha continuava. Lá fora uma lua  solidária viajava também.
              Moisés, liderava a marcha conduzindo a sua gente atravessando o agreste e a insolação vermelha em busca de uma nova Canaã.


Um conto de José Alberto Lopes-
SBC-19/07/2012

[edição melhorada em 10/05/2013]



Interurbano a cobrar

  “Casar filhas é como queimar a própria casa”. Li isso certa vez em algum lugar. Pelo menos assim foi para o senhor Hiroshi e a senhora Keiko. Eles já haviam vividos essa situação por três vezes. A última e definitiva foi com a  caçula Asako.
        Dizem  também que um escritor quando perde a vontade de escrever, morre. Perder o colorido da vida só porque casam filhos, é bem parecido, principalmente para algumas mães como a senhora  Keiko, pelo menos por alguns momentos da sua vida. Uma vez por ano as filhas vinham visitá-los, umas já trazendo netos, mas isso não bastava à senhora.
        O senhor  Hiroshi parecia pelo menos aparentemente, ter assimilado melhor as ausências, mesmo assim, às vezes, deixava se abater. Mas, Keiko se queixava o tempo todo. A casa e o quintal agora mais amplos, de certa forma os incomodavam. Às vezes  tinha-se a impressão que aquele silêncio absoluto que envolvia o ambiente poderia ser interrompido a qualquer momento pelas algazarras sadias das crianças.
        Na verdade o único ser que ainda continuava fazendo festa todos os dias era o velho cão da família que vivia deitado na soleira.   Todas as manhãs quando abriam a porta da casa, entrava Rex rapidamente, e lá ia o pesado animal troteando sobre o assoalho encerado da casa, visitando um a um os quartos das meninas, agora vazios.

        Num sábado logo de manhã o senhor Hiroshi chegou da praia trazendo lindas pescadas-brancas. Era costume se comprar peixes ali na praia e ele regularmente o fazia, mas era dona Keiko quem regularmente os limpava. E não foi diferente naquela manhã. Hiroshi como sempre, preferia cuidar da pequena horta, e  assim o fez. Depois se acomodou numa rede que ficava na área dos fundos para ler um jornal. Enquanto lá na cozinha pacientemente  limpava os peixes, dona  Keiko não deixava por menos, cobrava dele insistentemente  alguns afazeres:
        - Hiroshi!
        - O que foi?
        - Olha! Você precisa trocar a lâmpada do corredor né!
        - Sim, depois do almoço.
        - Você diz isso faz tempo.
        - Hoje eu prometo.
        - Ah! A torneira do banheiro.
        - O que tem ela?
        - Está pingando.
        - Vai ver está resfriada!
        - Não tem graça...

        Ora, por causa  do cheiro forte de peixe, os telhados e muros vizinhos estavam fervilhando de gatos. Aos poucos esses desconfiados felinos desciam e se aproximavam sorrateiramente da mesinha onde a senhora limpava as pescadas.
        Rex por sua vez já na larga  idade em que se encontrava, parecia ignorá-los ou quem sabe tolerava-os.
        De quando em quando dona  Keiko lançava bem longe dali um punhado de tripas e guelras para se livrar dos bichanos. Porém, mal dava as costas e lá vinham os pedinchões novamente... O quintal era uma sinfonia de miados.
        Eu sempre ouvi dizer que gatos têm medo de água. Então por que gostam de peixe? Bem, é que gostam de peixe e não de água, deve ser esta a resposta....
        Naquela rede, seu Hiroshi que há uns minutos fora vencido pelo sono, quase teve um troço. Acordou espavorido por causa dos gritos estridentes de dona Keiko.
        - Hiroshi meu velho!
        - O que foi mulher?
        - Venha ver o que encontrei  dentro do peixe!
        - Já estou indo.
        - Venha, é uma pérola grande e azul.
        - Uma pérola dentro de um peixe? Azul?
        - Sim,  Corre!
        Dona Keiko não se conteve, apanhou o  tal peixe e correu para a varanda a fim de se vangloriar de seu achado. Não deu três passos e o peixe lhe escorregou das mãos. Um rajado muito esperto cruzou-lhe o caminho e num salto certeiro abocanhou aquele  belo exemplar e desapareceu pelos quintais afora.
        - Não acredito, não! Lastimou dona  Keiko toda pintalgada de escamas.
        - O que foi?
        -  Droga de gatos...
        - Maldito gato! Vou pegá-lo. Exclamou Hiroshi com os olhos ainda meio pregados de sono.
        - Como? Nem sabemos para onde foi.
        Desapontada dona Keiko foi consolada  pelo marido que num sussurro ainda lhe perguntou:
        - Era grande?
        - Sim, nunca vi igual.
        - Uma pérola assim tão grande deve valer uma nota não? E ainda, dentro de um peixe?  Perguntou ele com um olhar maroto.
        - Deixa pra lá, você está pensando que fiquei  louca.
        - Não é isso querida, olhe para o seu bracelete de plástico!
        - O quê? Caiu uma bolinha, então foi isso? Oh! Que vergonha!
        - Vergonha não, e se não fosse bijuteria? Disse ele fingindo austeridade.

         Meio aborrecida, Keiko voltou aos seus afazeres na cozinha e logo atrás se desculpando seguiu Hiroshi oferecendo ajuda. Logo a camaradagem entre eles voltou a reinar. Almoçaram e foram depois para a varanda fazer a sesta. Lá, aquela rede os esperava. A tarde estava azul e nenhuma nuvem por testemunha. O cheiro forte de peixe   já havia desaparecido e os gatos também.
        - Meu velho!
        - Oi.
        - Lembra-se das meninas correndo pra lá e pra cá?
        - Lembro sim. Às vezes, parece que as vejo  pedindo colo...
        - Sabe meu velho, às vezes sinto que arrancaram três pedaços de mim.
        - Não deixe esses sentimentos lhe dominarem, faz mal a você. Além  do mais, elas estão casadas e bem casadas. Agora têm vida própria, filhos, maridos.
        - Eu sei disso, é que o tempo passou tão rápido... e ainda  não consegui aceitar essas coisas.
        Um silêncio contemplativo pairou por um instante.... depois rompeu seu Hiroshi:
        - Acho que estamos ficando velhos!
        - Eu, nem tanto. Sorriu  dona Keiko  meneando os próprios cabelos recém-tingidos e o rosto empastado de creme anti-rugas.
        Sorrindo, disse seu Hiroshi:
        - Sabe? Certa vez  li uma frase que dizia assim: “A poesia  consagrada  com o tempo, não mais pertence ao poeta, pertence  ao mundo embora tenha  lá a assinatura dele”  Acho  que  assim também são os filhos.
        - Então nossas meninas são as nossas  poesias! Afirmou.
        -Sim, isso mesmo, e belas poesias,  frutos da nossa  inspiração! Sorriram..
        De mãos dadas e rostos colados, e bafejados pela brisa suave  que vinha do mar, aos poucos adormeceram... A rede, na sua inconstância, não demorou muito e também se aquietou.

        Acordaram tempo depois com o apito do amolador de facas que passava pela rua. O dia já zanzava por outros horizontes.  Entraram, menos Rex que apareceu com as patas lambuzadas de amoras maduras. Prepararam o chá costumeiro e nem bem se sentaram à mesa, o telefone tocou, Era Akemi a mais velha, ligando do Canadá e avisando que em uma semana chegaria para ficar. Separara-se definitivamente. Trazia malas e dois filhos. Isso causou um espanto e mal estar muito grande no casal de velhos, posto que até aquele momento o casamento de Akemi parecia sólido.
        Porém, mais uma surpresa estava  a caminho. Uma hora depois o telefone tocou novamente. Agora era Amaya a filha do meio. Voltava também de mala e cuia, com um filho no colo e outro na barriga.   Rompera com o marido pelo menos por algum tempo... disse ela choramingando.

        “Casar filhas é como queimar a própria casa”... Isso já foi dito! Porém, da forma como estavam acontecendo as coisas, não seria demasiado dizer que a casa do casal de velhos, logo arderia em chamas novamente, agora, de forma inversa.
        Após terem assimilado o susto, embora tristes pelas separações, o senhor Hiroshi já no dia seguinte encarregou-se daqueles afazeres...  Trocou a lâmpada do corredor, fez o reparo na torneira que pingava, além de outros que se faziam necessários para a acomodação de toda aquela gente.

        Naquele  domingo, na parte da tarde, um interurbano a cobrar. Agora era a caçula Asako que residia  em  Manaus. Dona Keiko atendeu, e por um instante ficou pálida, estática. Seu Hiroshi, por seu turno ameaçou levantar-se e sair da sala, mas logo tudo ficou bem. Era apenas uma ligação de rotina.
        Dona Keiko e seu Hiroshi se entreolharam e respiraram aliviados...



Um conto de José Alberto Lopes®
SBC-SP. 16/04/2010




A Casa de Orates

        Chovia naquela quarta-feira na interiorana cidade de Jambeira. Suas poucas ruas estavam desertas. Ou quase, pois uma figura furtiva, metida num sobretudo, caminhava pela rua dos remédios. Em frente ao número 55 parou e tocou insistentemente a campainha.
        - Há alguém em casa? Gritou o forasteiro.
        - Um momento! Gritou o de dentro, e concluiu: - A quem devo  receber?
        - O doutor!
       - O doutor?
        - Sim exatamente ele!
        - Então vamos entrando Doutor Abrantes, sou Messias, o sub gerente da casa. Mas então o senhor resolver antecipar os dez dias?
        - Mudanças de planos meu caro homem, mudanças de planos. Mas a propósito, pode me chamar somente de Doutor, assim fica mais fácil!
        Finalmente chegara aquele que assumiria o cargo  de diretor geral do manicômio de Jambeira. Era formado pelas melhores escolas de psiquiatria da França e Áustria. Veio para substituir o anterior que fora afastado por senilidade. Acumularia as funções de diretor e alienista. Não era velho nem moço. Seu nome era Abrantes Fróes, aliás, Dr. Abrantes Fróes. Ficaria residente na casa.
        Após livrar-se das roupas e sapatos encharcados, as acomodações da casa foram a ele apresentadas.
        Na manhã seguinte, acompanhado por uma pequena comitiva,  Abrantes visitou as outras depedências da casa inteirando-se dos problemas e rotinas. Após a integração, passou imediatamente a despachar do seu gabinete exigindo agora relatórios diários sobre todas as ocorrências na casa. Também introduziu métodos mais severos de tratamento e enrijeceu a disciplina. É evidente que as mudanças radicais naquilo que há muito já era rotina acabaram desagradando a todos.
        Dentre os internos que ali residiam, alguns se arvoravam ser pessoas famosas, mas Botelho Guimarães Rocha ao contrário, não se intitulava ou admirava qualquer vulto famoso, mas acabou ele, ganhando notoriedade ao protagonizar a incrível história que se passou lá no manicômio de Jambeira.
        Estava na casa já havia três anos. Tinha a mania de perseguição e jurava que as mudanças impostas pelo novo gerente tinham por objetivo prejudicá-lo. Haveria um complô contra ele. Repetia.
        Embora não houvesse qualquer parentesco entre Botelho e Abrantes, havia sim, certa semelhança física entre eles. “cara de um e focinho do outro”. E some-se a isso a voz e até uma pinta de nascença que os dois possuíam no mesmo lugar no rosto. Porém com uma diferença bem sutil... Botelho apresentava um arremedo de cabelos no cocuruto, enquanto Abrantes era lá provido de boa e bem cuidada cabeleira.
        O que se viu naquela noite foi um Botelho ensimesmado além do normal e  muito preocupado, zanzando pra lá e pra cá em seu quarto tentando desvendar em  seu imaginário o que de fato os bastidores tramavam contra ele.
        Assim que amanheceu resolveu tirar tudo a limpo. Para isso, disfarçou-se de enfermeiro. Na lavanderia conseguiu facilmente o que precisava e marchou resoluto até o gabinete do doutor. Já no corredor aproximou-se da porta e bateu:
        - Quem é?
        - Sou eu o enfermeiro!
        - Entre!   Mas não me lembro tê-lo chamado.
        - O senhor me chamou!
        - Não me lembro!
        Botelho então percebeu as dificuldades que enfrentaria para engrenar uma conversa com aquele. O muito que conseguia eram respostas lacônicas, às vezes sem nexo. Os olhos do doutor sequer  viram a figura de Botelho, estavam fixos numa papelada sobre a mesa.
        - São os relatórios? Insistiu Botelho.
        - Hum!
        - O que dizem? Atreveu-se.
        - Não me lembro!
        - Do quê?
        - Ah! Agora  me lembro, pedi um barbeiro, você é ele?
        Então Botelho com um olhar ladino, era louco, mas , não burro, respondeu:
        - Sim, sou eu! Só preciso descer e apanhar os  apetrechos.
        - Não precisa, tenho tudo aqui naquele armário, atalhou o doutor.
        A sorte parecia voltar para o lado de Botelho, afinal, barbeiros e fregueses costumam conversar sobre tudo. Mas veio a decepção. O máximo que se ouviu dele desta vez foi um resmungo pedindo pressa no serviço. Era mesmo do tipo que não dava trela pra qualquer um. “Que maçada, por nada faço a barba desse sujeito” Pensou ele furibundo, quase desistindo. Mas continuou terminando de escanhoar aquele  rosto  grande.
        De súbito num ato involuntário, tocou de raspão o cocuruto do  amargo freguês. Diante  do inusitado Botelho ficou boquiaberto, mas foi só por uns segundos, pois logo desandou a gargalhar e perguntou em tom irônico:
        - Então o senhor usa uma peruca?
        - Passa ele pra cá! Ordenou o Doutor.
        - Não! Respondeu Botelho fazendo gracejos.
        - Dê-me logo!
        - Já disse que não!
        E assim, experimentou-a mirando-se num espelho que ali havia.
        Sem muito que fazer saiu o Doutor desesperadamente pedindo por socorro. Socorro que imediatante chegou.
         Foi uma cena antológica, ridiculamente cômica. Os brutamontes da segurança colocaram o então doutor numa camisa-de-força e o arrastaram escada  abaixo, apesar dos protestos e  ainda teceram cuidados ao outro, o  agora falso doutor.
        Devido a semelhança já apontada entre eles, a peruca  deu o tom perfeito à burla, tanto que se o próprio diabo, a quem chamam também de ladino, se ali estivesse, com certeza também seria enganado.
        Na casa existia um local a que chamavam de quartinho escuro. Uma invenção do próprio doutor Abrantes. Uma espécie de sossega-leão aos mais exaltados, e ironicamente foi ele mesmo quem o inaugurou.
        Enquanto o Doutor, sem a peruca,  provava do seu próprio veneno, Botelho, com a peruca, agora posando de diretor geral do manicômio é quem dava as cartas.
        O seu primeiro ato foi revogar todos os atos anteriores impostos pelo doutor Abrantes. O segundo ato foi transformar o manicômio em um externato para alienados... Porém, a maioria deles nunca retornava, e isso criou um sério problema de segurança para a pacata cidade de Jambeira.
        Mas no terceiro dia aconteceu o revertério. À noitinha quando o silêncio já permeava os corredores da casa, saía do desterro um homem enfurecido, humilhado, levado e tratado como qualquer, sem o merecer dizia Abrantes para os próprios botões. - Como pode isso a um catedrático?...
        Viu a janela entreaberta do quarto que por justiça ainda lhe pertencia, no qual dormia injustamente o seu desafeto.
Pela varanda escalou  sorrateiramente a janela e ganhou o quarto. Um pequeno abajur de uma luz frouxa dava ao ambiente um ar de conforto, diferente do quartinho escuro.
        Lá estava o homem roncando feito um porco tomando sol. Por sorte dormia sem  a peruca. Sobre a mesa  do abajur, estava o objeto da discórdia, mas nessa situação era preciso muita cautela para que o outro não acordasse. E pé ante pé, apanhou-a e com destreza vestiu-a num segundo. Logo alcançou a porta e com mãos de veludo abriu-a, e estando do lado de fora gritou com toda força de seus bofes...
        - Socorro! Há um louco no meu quarto!
        - De novo? Disse um daqueles que acudia.
        Era o segundo ato de indisciplina naquela mesma semana e pelo mesmo indivíduo... Essa reincidência  valeu castigo dobrado lá no quartinho escuro.
        Então, tudo voltou como antes na casa e Abrantes...
        As mudanças  de ordem assim tão abruptas, já infernizavam a cabeça dos funcionários. Disse um em tom irônico: “Isso tá  parecendo um hospício”
        Todavia, um problema grave carecia de solução imediata,  urgente. Tratava-se daqueles internos liberados. Não mais retornando, precisavam ser encontrados e recolhidos a todo e qualquer custo. Já não tinham em conta  quantos eram.
Para isso, uma comissão se reuniu e criaram  uma operação chamada de : “Operação jambeira”. Sem escrúpulos, alguns agentes dessa operação acabaram cometendo exageros. Foi uma espécie de caça aos  hereges..
        Muitos cidadãos jambeirenses que nada tinham com a história, foram taxados ou confundidos com aqueles alienados e acabaram na mesma malha, passando também a hóspedes do manicômio, pelo menos até segunda análise. Foi um descalabro. A cidade sentia-se insegura, mais ameaçada do que antes. Todos fugiam apavorados diante de um corvo-campeiro, era assim que o povo chamava os agentes da operação.
Com isso, o comércio já não abria  e nas repartições públicas foi decretado ponto facultativo até que as coisas melhorassem. Mesmo que arriscando, quisessem assistir a uma missa, o ato de fé ou obrigação não seria possível, pois até o padre da cidade fora também recolhido. Ninguém ousava mais sair de casa. No final das contas, a cidade estava sitiada pelos agentes e já beirava a loucura... Por que não dizer: “Jambeirava a loucura”? , frase que tomo emprestado de um cronista da capital que andou escrevendo sobre o entedioso caso.
        Aqueles  residentes arbitrariamente recolhidos já estavam em pé-de-guerra. A iminência de um motim era fato. Porém o padre que ali também estava, procurava acolhê-los com palavras de fé e esperança. Pregava com ar resignado as boas novas que haveriam de vir depois daquele flagelo. – Primeiro o sofrimento, depois o regozijo.    Dizia ele sob os olhares atravessados e irados da turbamulta.
        Era período de eleições municipais. A caça aos alienados  dispersos, já se dissolvera. A cidade timidamente voltava ao seu normal. Porém, os que foram recolhidos,  recolhidos continuavam, até o momento em que os políticos da cidade interferissem pessoalmente  na questão. Apressada as análises, por fim, aqueles foram liberados.
        Enquanto isso, Botelho cumpria máximo isolamento no tal quartinho.
        Mas como nesse mundo nada é para sempre, numa manhã bem cedinho em que ainda chovia, uma sirene estridente começou a tocar bem em frente ao número 55 da rua dos remédios. O barulho era tanto que parecia que uma catástrofe havia acontecido. Num instante toda a cidade e  o manicômio já estavam em pé.
        Lá fora estava um furgão azul-escuro enlameado até as portas.
         Então do funesto carro saltaram três enfermeiros e o motorista.  Eram funcionários de outro manicômio com  um mandato para resgatar um tal de Doutor ali identificado, e que  de lá havia fugido há mais de dois meses. Lá em Pedralba, esse homem era interno dos mais problemáticos. Lá já aprontara tantas e boas, apesar da rigidez daquela casa.  Como demonstrasse certa  agressividade, vestiram-no com uma camisa-de-força e diante dos olhares perplexos de todos, ele se despediu aos gritos prometendo voltar em breve.
        Botelho ainda teve tempo de vê-lo sair arrastado portão afora e suspirou aliviado.
        Três dias após o episódio, numa manhã bem cedo, a campainha do número 55 da rua dos remédios, alarmava insistentemente:
        - Há alguém em casa? Gritou o forasteiro.
        - Um momento! Gritou o de dentro. E concluiu: - Bom dia, a quem devo receber?...
        Era finalmente ele, o verdadeiro Dr. Abrantes Fróes. Caminhou casa adentro com uma fisionomia arrastada, sob os olhares oblíquos dos funcionários.


Um conto de José  Alberto Lopes.®

SP. 19/06/2009