O
Vulto
A
marujada estava animada. Afinal, depois de três meses a bordo estava na hora de
tirar a “maresia”. Era um termo usado por muitos marujos quando desembarcavam.
Desceram a avenida do porto e logo caíram
na Rua General Câmara. Era um bando de aves brancas e barulhentas. Aportaram na
Fragata Estela e estariam livres até aquela meia noite.
Emerique era um marinheiro de primeira
viagem, por isso sentia-se ainda um pouco deslocado dos demais.
Filho de mãe solteira tinha mais dois
irmãos pequenos. Trabalho por lá era raro.
Pra escola de padres não quis, não tinha vocação.
Vivia desde pequeno perambulando pelas
praias de Pernambuco catando uma coisa aqui e acolá ou ajudando a desmalhar
redes de pesca em troca de minguados peixes. Na maioria das vezes não passava
de xepeiro e se o seu embornal voltasse vazio, ainda enfrentava a ignorância da
mãe.
Romão era um velho marujo com muitos anos de
bordo que sempre quando ancorava naquele cais caminhava por aquela beira de
mangue, um dos lugares mais miseráveis que conhecera em sua vida. Lá as
palafitas emergiam do lodo podre e se multiplicavam formando caóticos
emaranhados de casebres. Mas era para lá que sempre ia, como aves migratórias
que sempre retornam. Certa vez voltando àquele cais encontrou o menino todo
enfarruscado vadiando por lá. Abordou-o e encasquetou nele ingressar na marinha.
Como já tinha idade alistou-se e como
praça zarpou para a sua primeira viagem. A marinha então foi a sua tábua de
salvação e também de sua família.
Era ainda um rapazola quase imberbe.
Dividia por coincidência a acanhada cabina da fragata com Romão, aquele mesmo
que o trouxera para a marinha. Romão era
muito vaidoso. Barba e cabelo sempre bem aparados, uniforme impecável e sapatos
brilhando. Quando sorria, de sua boca
faiscava alguns gramas de ouro. Talvez
por isso vivesse sempre sorrindo. Ali os dois pouco conversavam. Na verdade era
Romão quem respeitava o silêncio de Emerique.
Quando chegaram, a rua já fervilhava de
gente. Aquela procissão diferente diriam alguns, profana, caminhava lentamente num
ir e vir constante... Nos portais daqueles velhos casarões ou nas calçadas mal
cuidadas e mal iluminadas, jovens e velhas disputavam possíveis clientes.
Muitos anjos caídos naufragados naquele pântano mórbido sem nenhuma
possibilidade de volta iam cedo mortificando corpo e alma sob tetos sórdidos...
Lá o grupo se dividiu. Romão ofereceu
um trago a Emerique. Era um bar bem típico daquela rua. Dividiam o espaço com
bêbados; traficantes; estróinas e claro, com muitas prostitutas e rufiões.
Depois de uns goles de cerveja, Romão quebrou finalmente o silêncio do jovem marinheiro e perguntou-lhe:
- Como foi de viagem?
- Um pouco de enjoo. Respondeu o jovem.
- É normal, com o tempo se acostuma.
- Aqui é Santos? O senhor conhece?
- Sim, nasci no morro do Marapé, mas
conheço também todos os portos e cidades marítimas do Brasil. Gabou-se o velho
marujo apontando com um cigarro.
- Então conhece bem este lugar? Parece
perigoso!
- Com a palma da minha mão. Mas não se
preocupe! Aliás, vou te levar até a casa de uma velha amiga, a Dolores. Lá tem
lindas raparigas, você vai gostar.
Nem bem terminaram de beber a segunda partiram
alegres rumo à casa de Dolores. O jovem
rapaz saiu pisando em ovos...
Lá não era diferente de outros lugares.
Uma multidão de gente se comprimia na balbúrdia que se formava nas inclinadas escadarias.
Muitos já tentando ali mesmo as preliminares. Mas para ser exato, uma diferença
havia. A diferença era que as “meninas” de Dolores eram selecionadas. Eram
jovens e mais atraentes.
Uma ampla sala com luzes estroboscópicas
que antecedia aos nichos era uma espécie de portal de passagem à venérea
relação. Como objetos elas eram
escolhidas a dedo.
Mal chegaram à recepção, Romão e Dolores
foram logo se abraçando. Ele lhe trouxe umas recordações lá do Maranhão. Eram
uns bibelôs. Ela os admirou, fez inveja
a uma amiga e agradeceu sorrindo.
Ansioso e sem perder tempo Romão
sussurrou no ouvido da caftina avisando que trazia ali um noviço. Mas antes
mesmo que o apresentasse, Emerique já se engraçara com uma das protegidas da
casa. Não demorou e subiram para um dos nichos.
- Esse sabe escolher! Disse a mulher
dando um sinal de positivo.
Emerique parecia nunca ter estado com
uma mulher naquela situação.
Ela era uma jovem muito bonita, esguia,
corpo impecável. Tinha longos cabelos escuros que caíam sobre seus ombros desnudos. Os olhos
eram esmeraldinos e tristes e os lábios exageradamente banhados de carmim. Pele
da cor de canela e usava um perfume suave. Dizia chamar-se Valquíria e ofereceu
a ele o seu corpo, os seus préstimos, como convinha a sua lida.
A princípio o rapaz foi acometido por
um tremor incontrolável. Fato que comprovava que era virgem de mulheres. Daí
para frente o que se passou ali somente eles e a lua promíscua pela fresta da
janela poderiam dizer.
O dia seguinte era sexta-feira-santa e
Dolores respeitava muito os dias santificados. Por isso após meia noite a casa
seria fechada reabrindo somente no sábado de aleluia. E assim as horas foram
passando, passando, sem que Romão e Dolores percebessem. Estavam numa saleta onde cosiam um bom papo.
Ruminavam o passado e bebericavam o presente. Do futuro quase nada disseram.
Riam. Mas o bate papo não distraía a alegre senhora, que mantinha os ouvidos na
conversa e olhos ágeis na clientela. De súbito o velho cuco na parede
pertubou-os mais uma vez. Os ponteiros agora faziam o pequeno leque das onze da
noite. Apavorado, Romão saiu na carreira procurando por Emerique. Já era hora
de ir e onde está o rapaz?
Tomou o estreito corredor e bateu
suavemente em algumas portas.
- A número cinco. Apontou a caftina
deixando cair sobre um prato, cinzas do seu cigarro.
- E aí marinheiro, tudo bem? Temos que
zarpar! Gritou o homem.
- Sim senhor! Eu já estava de saída.
Respondeu timidamente.
- Bom, o mar nos espera!
Emerique caminhava e não desgrudava os
olhos da porta entreaberta de onde saíra e Romão não perdeu tempo:
- O que foi agora garoto?
- Acho que estou gostando de alguém...
- Dela?
- Sim!
- É só uma prostituta...!
- Mas ela até me beijou!
- E daí? Não vê que isso é cegueira que
logo passa?
- Mas senti algo diferente por ela e
ela também por mim, ela disse! Respondeu quase em sussurro.
-Veja! Tudo o que ela fez ou deixou de
fazer foi a troco de dinheiro, foi pago, não há nenhum sentimento!
- Não é assim! Retrucou o jovem agora
com um tom mais ríspido.
Pagaram o que consumiram, horas,
cigarros e bebidas e se despediram de Dolores. Desceram apressadamente aquela
escadaria ainda repleta e logo ganharam a rua. Uma brisa que soprava amenizava
o calor que fazia.
No caminho para o porto Romão insistiu
em dar conselhos ao garoto que já não os aceitava como no início.
- Olha aqui, se você quer dar cabeçada
pode ir, mas antes escuta esse velho marinheiro tão experiente quanto as pedras
deste cais: “Existe amor roubado, mas não existe amor comprado, você quer ficar
com uma prostituta não é? Vá em frente, vá, mas lembre-se: O gato perde o pelo
mas não perde o pulo, entendeu?”
- Não!
Já quase perdendo a calma, disse-lhe.
- Com certeza nem houve prazer por
parte dela!
- Não acredito não senhor! Resmungou.
- Acredite! Retrucou o velho
marinheiro. E continuou – Conheço essas paradas, essas coisas entende? Antes de
você nascer, eu já era veterano nisso! Gabou-se mais uma vez.
- Não sei por que o senhor insiste em me
dar conselhos. Não é o meu pai. Na verdade, nunca tive um!
Um silêncio cortou abruptamente a noite.
Romão retardou um pouco os passos, enquanto Emerique acelerava os seus.
Dali até o portaló do navio
permaneceram mudos. Emerique estava chateado e Romão furioso.
Por fim todos a bordo. Iniciou-se então
o árduo trabalho quase que totalmente braçal. Quando a última amarra foi
desatada, já passava da meia noite e de longe era possível ouvir o toc, toc da
pesada âncora sendo recolhida, enquanto um vento bonançoso soprava parecendo
avivar o braseiro das luzes da cidade.
Nas horas que se seguiram, Emerique e
Romão continuaram sem dar um pio. O rapaz estava passado, estava em pé a muque
e o seu coração mais parecia uma velha amarra descochada.
O
navio deu o primeiro apito e vagarosamente foi se afastando do cais à custa de
dois rebocadores. Agora Emerique já havia se recolhido à sua cabina enquanto
Romão ainda permanecia lá fora.
Estava ainda na proa puxando um cigarro
quando avistou um pequeno vulto que com insistência acenava. A silhueta era de
uma mulher esguia, cabelos soltos... O velho marinheiro então quedou-se por um
tempo, ficou pensativo. O silêncio era profundo, exceto pelo pulsar forte do
seu próprio coração e que parecia acompanhar o ritmo dos pistões do velho
Diesel. O seu pensamento parecia fazer
uma ligeira busca no passado. Porém, outro apito quebrou essa profundidade
silenciosa...
A fragata ganhava velocidade ansiando
pelo mar aberto enquanto Romão relutava em olhar para aquele vulto que acenava
de forma frenética. Quando olhou de fato, a escuridão, com a sua bocarra enorme
a tudo já havia engolido...
(Pseudônimo
: Alazão)
O
jardim da senhora Sueko
Depois que aquela velha casa
passou a ser habitada, tudo por ali ficou mais alegre e vistoso.
O senhor Kensuke e a senhora
Sueko viviam felizes tirando da terra o que a terra lhes devolvia graças ao
trabalho árduo e dedicado.
Além do pequeno pomar e das
hortaliças a senhora mantinha também um lindo jardim que ficava em frente à
casa.
Todos que por ali passavam
ficavam maravilhados não somente com o
colorido das flores como também pelo capricho com que ela se dedicava aos bonsais
e também aos arranjos florais.
Uma cerca baixa feita de bambu
onde se agarravam democraticamente um pé de bucha; uma aboboreira e flores de
ipomeia, circundava a gleba onde moravam.
Chegara a noite e na aldeia tudo
era silêncio, exceto pelos coaxares que vinham de uma plantação de arroz logo
abaixo. Um vento insistente parecia anunciar mudanças no tempo.
O casal já se preparava para
se recolher quando uma voz rouca chamou:
- Olá de casa! olá! Podem me
ajudar?
- Quem é a essa hora? Perguntou
o senhor Kensuke meio retraído e abaixando a luz do lampião.
- Um peregrino procurando um
canto para passar esta noite!
Com determinado cuidado abriu
a porta, levantou o lampião conferindo o estranho e depois convidou-o a entrar.
O vento agora soprava mais forte.
Era um homem de meia idade e
com roupas bem simples carregando um alforje surrado feito de pano grosso. Tirou
o chapéu curto e ainda se apoiando num bastão de bambu agradeceu a acolhida. Na
cozinha avivaram o fogo quase borralho e serviram-no uma sopa quente e um chá
preto.
Num cubículo contíguo onde costumavam guardar
sementes e algumas ferramentas, um tatame estendido sobre palhas secas e um
velho cobertor deram ao peregrino uma noite reparadora após um dia inteiro de
caminhada!
Porém, o velho demorou a
dormir. Já era hábito seu deitar-se e ficar um bom tempo recordando tudo o que
acontecera durante o dia de caminhada. Os lugares; as pessoas; as paisagens, e
tudo ele anotava, pois esses eram os argumentos que lhe inspiravam a escrever.
Então ficava ruminando aquilo até que finalmente o sono lhe arrebatasse.
Amanheceu e o vento havia
parado, porém trouxe uma chuva muito forte. Uma chaleira fumegava sobre a
chapa. Fazia frio lá fora e a cozinha era agora o lugar mais confortável da casa.
Mas, o peregrino estava mesmo muito preocupado com o fato de a chuva não parar
porque isso retardaria a sua chegada ao destino.
Não demorou e a senhora Sueko
trouxe uma bacia com água morna e duas toalhas. Enquanto enxugavam os rostos,
conversavam:
- O senhor vai para onde?
Perguntou o dono da casa.
- Para o templo da montanha
visitar um grande amigo de infância. Mas acho que me perdi no caminho, por isso
não consegui chegar ao albergue que fica no sopé dessa montanha. Respondeu ele
olhando a chuva pela pequena janela entreaberta. E continuou: - Já há muitos
anos renunciei à vida urbana. Prefiro andar pela vida junto à natureza buscando
conhecimento e inspiração para escrever. Sem apegos sinto-me mais feliz..
Cansar destas viagens é bem mais agradável do que se cansar da cidade.
Diante dos olhares do casal,
um misto de espanto e curiosidade, o velho abriu seu alforje e de lá retirou
uns papéis pardos, uma pena e começou a rabiscar. E foi com apurada
concentração que passou a escrever sem parar, como aquela chuva que caia, e
isso aguçou ainda mais a curiosidade dos dois. “O que escrevia aquele homem com
tanta dedicação e assim tão pensativo?”
- Deve ser alguém com muito conhecimento, viu
como fala e como escreve? Sussurrou a
senhora. O marido apenas franziu a testa concordando.
A chuva deu uma amainada e
dentro da casa o que mais dava para ouvir além do crepitar da lenha era o
rangido da pena sobre o papel. O fogão já cozinhava o almoço mas o chá, esse era imprescindível.:
- Senhor! O chá.
- Ah! sim. Obrigado. Disse ele
à senhora agradecendo de forma respeitosa como sempre fazia.
A senhora Sueko então
aproveitou esse momento para matar a sua curiosidade. Foi com muita discrição
que passou os olhos de relance sobre a
mesinha e perguntou:
- Me desculpe senhor, são
poemas?
- Sim, haicais, uma forma de
poema. Conhece?... gosta de escrever também?
- Sim, gosto.
- Quer tentar o haicai?
- sim!
- Então observe, pois ele pode estar na
janela, na chuva, aquecendo-se perto do fogão, na palha, na floresta..... é só
abrir a sua alma. Explicou ele pausadamente com a paciência que lhe era
peculiar.
Quando a chuva parou de vez,
já era madrugada do outro dia. O céu amanhecera coalhado de estrelas. Nem
parecia que todo aquele aguaceiro havia
caído. Aromas agradáveis das folhagens e
flores noturnas ainda vagavam pelo ar. Assim como de noite um pouco da luz do
lampião fugia por algumas frestas da
cabana, de dia, logo de manhã parecia que o sol trazia tudo de volta e passando pelas frestas se projetavam na tosca parede imagens fantásticas, surreais. Ao mesmo tempo
que observava essas
imagens o velho peregrino também se
preparava para partir. Em seu alforje além dos papéis, iam também algumas tangerinas e caquis para a viagem.
Mas, foi o chá mais uma vez quem deu as
honras. Servindo-lhe o chá da manhã e desta vez um pouco tímida, a senhora
Sueko mostrou-lhe uns haicais que havia escrito a noite passada. O velho os
examinou demoradamente. Depois, movendo as grossas sobrancelhas brancas, disse:
- A senhora, excelente haijin!
A senhora Sueko não cabia de
contentamento e orgulho. O senhor Kensuke apenas a olhou por cima dos pequenos
óculos e sugeriu para que o peregrino
ficasse mais um dia até que os caminhos estivessem secos. O velho agradeceu
mais uma vez pela hospitalidade recebida, mas estava determinado e continuou:
- Bem! Agora tenho que ir, o
sol logo arde e a estrada deve estar morrendo de saudades deste velho
andarilho. Adeus minha gente, adeus.
E numa despedida mais de
olhares e acenos, o peregrino fincou pé no caminho.
Quando virou-se para olhar
mais uma vez, a velha casa já se perdera entre umas ramagens. Mesmo assim
acenou levantando o seu bastão. No mais, somente o som da mata.
Depois da chuva a rotina
voltara ao lugar, agora acompanhada de um vazio. Porque aquele homem sábio nas
palavras ocupou não somente o espaço da
casa por alguns dias mas, principalmente e para sempre, o coração do velho
casal.
Todavia mesmo em meio a esse
sentimento a senhora teve uma ideia bem
original. Em pequenas tabuletas feita de madeira ela passou a escrever seus haicais
e os fincava junto às flores.
Os moradores que ali passavam,
se já se maravilhavam com aquele jardim, agora tinham mais um motivo.
Conta-se caro leitor, que com
o passar dos anos vários aldeões da redondeza aprenderam também a escrever haicais,
graças a um sábio poeta que por ali
pernoitou e que nunca mais fora visto, e principalmente por causa do jardim da
senhora Sueko.
Pseudônimo
: Quasar
ago. de 2018
O Derradeiro Porto
O saguão de espera para embarque estava
fervilhando de gente. Aquela seria a primeira viagem de Júlio e a primeira de
navio. O jovem estreava como caixeiro viajante. Estava ansioso.
O transatlântico Carl Hoepcke era um navio luxuoso,
raro em portos nacionais. De origem alemã, construído em 1.926 fora adquirido
juntamente com seu irmão gêmeo, o Anna, para compor a frota duma promissora empresa de navegação
de cabotagem instalada em Florianópolis Santa Catarina.
Possuía duas classes. Tinha ótimos camarotes, salão de
festa, mesas com cadeiras giratórias, cozinha sofisticada, além de louças e
pratarias importadas. Também era provido de rádio para navegação e até um local
reservado para fumantes, também com belas e confortáveis poltronas e divãs. Um
piano animava os passageiros e era tocado pelo telegrafista do navio.
No saguão o burburinho continuava misturado aos
rangidos dos bondes que passavam ali na avenida Portuária.
Um casal
chegara atrasado e foi logo
perguntando sobre a partida do navio.
Teve sorte pois o atraso já somava uns trinta minutos.
Era um homem de
meia idade e impecavelmente trajado.
Acompanhava-o uma linda jovem também muito elegante. Ela usava um chapéu com
longas plumas, bolsa e sapatos da mesma cor do vestido e muitas joias.
O homem acomodou-se numa poltrona próximo de Júlio, acendeu um legítimo Havana
e começou a folhear o matutino. De seus
dedos coruscavam grandes anéis de ouro com pedrarias em ônix e rubis. Do seu
lado, a moça permanecia em pé. Isso
deixou Júlio intrigado.__Que homem Grosso! Pensou. Indignado levantou-se e
cedeu o seu lugar a ela.
Nesse simples gesto percebeu o quanto o mundo tornava-se cada vez mais pequeno. Era sem
dúvidas, Madeleine, não tinha como não a reconhecer. Não! não era ilusão da
fumaça desgarrada do seu cigarro! Era ela.
__ Meu Deus! é você? Disse ele surpreso quase murmurando.
__Júlio.....!! gaguejou a moça!
Na adolescência foram namorados. Trocaram juras e mais
juras ainda no tempo de colégio. Porém a
vida os separara. Enquanto se ensaiava
um diálogo, por sobre o jornal aquele homem
os observava com um olhar nada amistoso.
A moça franziu o canto da boca, agradeceu friamente e
sentou-se dirigindo ao chão um olhar
submisso. Nas entrelinhas, Júlio entendera o que se passava. Engoliu seco e afastou-se do
local dirigindo-se ao bar onde pediu um
café, papel e lápis. Enquanto bebericava escrevia algo apressadamente. Seu peito ressoava forte!
Depois retornou para onde estava o casal e se apresentou ao homem oferecendo-lhe seu cartão de referência. O brutamonte o
ignorou abrindo as duas páginas do jornal conferindo as cotações do dia. Mesmo
assim correndo o risco conseguiu entregar à Madeleine o seu bilhete. Ela o
agasalhou fechando a mão e o guardou furtivamente entre os seios.
Finalmente todos puderam se dirigir ao portaló do navio e em seus camarotes se
acomodaram.
Então um apito rouco estremeceu o ar, o cais e o
capitão respirou aliviado!
O mar estava calmo naquela manhã, sol entre nuvens e
um noroeste fraco.
Logo o luxuoso navio deslizava preguiçosamente
deixando para trás o seu rastro n'água, uma negra cabeleira de fumaça e a velha Santos dos Andradas.
Mal guardara a sua mala retornou ao convés e com olhos
aquilinos varreu cada espaço na
esperança de ver novamente Madeleine. Mas não foi o que aconteceu e quando já
voltava descendo, um funcionário do navio o chamou discretamente:
__Senhor Júlio, senhor Júlio! pediram que lhe
entregasse isso aqui! Disse passando-lhe
rapidamente um papel dobrado em dois.
__Onde ela está? Interpelou o rapaz. Mas o funcionário
se retirou sem nada mais dizer.
Ansioso ele correu até a sua cabine. Era uma pequena
carta assinada com a letra M. A bela cursiva
sacramentava o que Júlio não queria acreditar. Estavam casados e fazia
pouco tempo e ela não era feliz.....Ele era um homem influente no meio político
e também tinha negócios na Bolsa do café. O casamento acontecera por imposição das duas famílias. Porém, ela nunca o esquecera,
o amava e isso abriu ao rapaz uma réstia de luz....
Suspirando releu a carta e depois com os olhos marejados
jogou-se sobre a impecável cama e
dormiu. Não demorou acordou de um sonho estranho, um pesadelo. Sonhara que
Madeleine era uma das camareiras do navio, que aparecendo em seu dormitório pedia desesperadamente que ele
deixasse o local. Acordou puxando o ar e
com o coração bombeando forte. Lavou o rosto sacou um cigarro e logo estava recomposto. Mas,
já havia perdido a vontade de viajar
e sua ansiedade transformara-se em tristeza.
__Por que, Madeleine? Por quê?
Subiu e caminhou até a amurada do navio e lá debruçado com as mãos entrelaçadas,
ficou por longo tempo olhando para um
ponto fixo no espaço. Depois tirou do
bolso a carta e leu mais uma vez. Sua
cabeça latejava! A perdera
novamente....Mas os dias felizes
que tiveram, ainda viajavam no convés da sua memória... Porém isso não
bastava..
Então ali quase em transe foi repentinamente
despertado pelo alarme intermitente que
tocava.:
__Incêndio na
casa de máquinas, organizem-se em fila
indiana e dirijam-se até a área dos botes salva-vidas. Sigam o líder, gritou o
imediato com voz firme através de uma grande corneta.
Eram 168 almas
a bordo, entre tripulantes e passageiros. No desespero alguém lançou-se ao mar
e infelizmente nunca foi encontrado.
E num ato impensado Júlio quebrara as regras. Correndo
na contramão desceu até o seu camarote. Apanhava seus pertences quando uma
camareira o surpreendeu. Energicamente pediu-lhe que abandonasse
a área rapidamente e
seguisse os demais. Pôde levar apenas a pequena valise.
Saiu trôpego ganhando finalmente o convés. Acomodado em seu escaler ficou a matutar sobre a cena do pesadelo e a cena real que a pouco vivenciara...e se
perguntava por Madeleine!
Era manhã do dia 27 de setembro de 1.956, quando há
uns 29 quilômetros de Santos ocorrera o
acidente que só não se transformou
em tragédia, graças ao navio Inglês Norseman da WT e do outro navio, o Itaquatiá da CNNC que
navegando próximo a área prontamente realizaram o resgate de todos.
Júlio, por mais que tentasse não conseguiu mais avistar a garota. Chateado dali
mesmo retornou pra casa.
Desespero por desespero o capitão e alguns tripulantes
tentaram uma última e arriscada manobra para salvar o navio do incêndio que ainda o consumia.
Arrastaram-no com o auxílio de um rebocador e o imergiram propositalmente e de
forma parcial no estuário Conceiçãozinha. Após debelada as chamas, bem que o
Carl Hoepcke se negara a flutuar. Depois de várias tentativas foi
finalmente rebocado para o seu porto de origem.
Porém o orgulho, principalmente dos
Florianopolitanos estava ferido. O então
glamouroso navio já não era o mesmo.
Chamuscado, sem a chaminé e movendo-se
não por moto próprio deixou seus admiradores consternados. Mesmo assim o receberam
como um herói que retornava da guerra. A ponte Hercílio Luz estava tomada de
gente naquele dia e o aplaudiram quando ele a cruzou.
Mas o destino do Carl Hoepcke estava decretado! No
estaleiro Arataca ferindo mais uma vez o orgulho da sua gente, o então luxuoso
navio de passageiro foi transformado em navio cargueiro.
Dai para frente nunca mais tiveram notícias dele. O máximo que se soube é que fora rebatizado com outro nome. Assim
como Júlio também nunca mais teve notícias
de Madeleine.
Como cargueiro manteve a sua dignidade cortando as
águas costeiras do país
transportando carvão, açúcar, madeira...dentre outras mercadorias.
Caro leitor, essa história bem que poderia terminar
aqui. Júlio já parecia ter virado para sempre aquela página distante. Porém, num
dia quase final de fevereiro, como era
hábito saiu para a sua caminhada matinal pela orla marítima de Santos.
Sair do canal 3 e chegar ao canal 6 era
uma boa puxada. O sol ainda era tímido e o ar estava fresco depois da chuva da
madrugada. Foi pela areia.
O imenso mar o acompanhava a estibordo, mas foi à sua
proa ao longe que uma cena insólita aos
poucos se descortinava . Caminhou mais um estirão e.. Era um navio encalhado
nas areias de Santos. Aproximou-se e viu
que se chamava Recreio. Conferiu-o sem muito interesse e dali retornou, agora,
sob as sombras das velhas amendoeiras.
Algum tempo depois lendo um artigo num jornal da
cidade, muitas recordações vieram à tona!
Aquele navio chamado Recreio, tratava-se na verdade do
antigo Carl Hoepcke que depois de cargueiro ainda serviu como boate flutuante e
que ficava ancorado na praia do Góes em Santos.
Aconteceu assim:
“Era madrugada do dia 28 de fevereiro de 1.971 quando
aquele navio sentiu descochar as suas amarras. Nem a pesada âncora deu conta,
uma tremenda tempestade o arrastara em portentosos vagalhões arremessando-o à
praia.
Amanheceu e um gigante monumento de aço com mais de 62
metros de comprimento estava lá há uns 100 metros da
avenida aprumado sobre a
areia como se pedisse socorro. Logo aquela fortuita coisa digere a
atenção de centenas de pessoas que correm até o local, espantadas e curiosas.
Depois de intermináveis discussões burocráticas a
sorte estava lançada. Numa tarde vieram uns homens e a bico de maçarico o
retalharam como boi no matadouro.
somente lhe pouparam o leme, que ainda hoje encontra-se guardado em algum armazém do porto, o restante virou sucata barata.
É possível ainda hoje na maré-baixa, ver partes
grandes do seu casco que jazem nas escuras areias daquela ponta de praia.”
Esse artigo, esse acontecimento deixou Júlio mais uma
vez triste e saudoso. No dia seguinte saiu logo cedo e dirigiu-se ao local do
naufrágio. Era inverno a praia estava
praticamente deserta, as amendoeiras estavam desnudas e o vento cortava
de frio.
Era baixa-mar, então ele pode ver resquícios do velho navio. Quedou-se
por minutos..
Depois, num ato solene reduziu a pedaços aquela mesma
carta de Madeleine que guardara por
longos quinze anos e os atirou sobre o casco parcialmente exumado.
Emocionado deu as costas e caminhou pela areia sem
olhar para trás quase a pisar nas mesmas pegadas que o trouxeram até ali desaparecendo
aos poucos em meio à névoa. E eram aqueles pedaços tão pequeninos que as
gaivotas confusas se engalfinhavam numa disputa como se aquilo fosse migalhas atiradas.
(Pseudônimo: Alazão) -
A Geada
Apanhou a velha bengala de cabo de osso e seu cachimbo.
Solicitou três dos seus funcionários e
rumaram para o campo afim de
contabilizar os possíveis estragos causados pela geada. Saíram
emplumados de agasalhos, mesmo assim batendo o queixo e os cambitos.
Nem aquela pedra de anil que as lavadeiras usavam para
alvejar as roupas, era tão azul quanto o céu daquela manhã. A temperatura
estava muito baixa, coisa de trincar os ossos. O ar parecia parado. O sol estava anêmico...
O pasto era uma vastidão branca. Assim como os telhados, o
capô do velho Ford e as cercas. Até a superfície dum bebedouro parecia coberto
por um grande vidro baço. Pandora, com
certeza não poupara nem um pouco quando abriram-lhe a caixa.
O senhor Hernandez tinha muito orgulho da fazenda Esplanada.
Fora formada aos poucos e a custa de muitas dificuldades. Ia de um morro ao outro
e fugia à vista o seu comprimento. Mesmo assim o velho fazendeiro carregava uma ponta de mágoa quanto aos seus dois filhos. Nenhum
deles se inclinara a ajudá-lo na lida daquelas terras. Eram formados em outras
atividades e preferiram trabalhar em empreendimentos próprios. Muitas vezes a
memória do velho Hernandez era como uma gaveta desarrumada e fisicamente sem
dúvidas, ele já se apresentava como uma antiga roupa surrada. Por isso
carregava uma profunda preocupação quanto ao futuro da Esplanada. Todavia agora
era de se notar que o fazendeiro procurava influenciar o neto Pedrinho que passava férias na fazenda. Pelo menos,
curiosidade o menino demonstrava ter e andava pra cima e pra baixo enrabichado
às calças do avô.
__ Caiu uma geada daquelas, não é vovô? Perguntou o menino esfregando as mãos.
__ Meu filho! Teria caído se fosse neve! Geada não cai do
céu. É a temperatura muito baixa que
acaba congelando toda a umidade da superfície. Corrigiu o velho homem
explicando com muita paciência e naturalidade tendo total atenção do menino.
Parecendo chaminés que
caminhavam continuaram até um ponto alto donde era possível avistar um
mar de cafés alinhados impecavelmente e
estáticos como guerreiros de terracota.
Desceram para uma inspeção mais detalhada.
Após longo e exaustivo exame exclamou aliviado o velho
fazendeiro:
__ Graças a Deus! Desta vez a geada foi nossa camarada. Um ou
outro pé pouco queimado e só, pouca coisa mesmo! Sorriu. E continuou: __ Sabe!
Além de matar, a geada é capaz de causar falências e grandes prejuízos até à
economia dum país, embora eu entenda que
os credores, aqueles que sugam a
não poder mais são os piores...
Desta vez nos safamos, mas enquanto durar o inverno corremos perigo. Tomara que
não, mas é o caso de que a segunda é sempre a mais forte!
Completou apertando o fumo no seu velho cachimbo!
De fato caro leitor, muitos
credores inescrupulosos querem somente a prata em suas mãos. Vivem na verdade da especulação, nada
produzem. Ou paga-se a exorbitância dos juros ou perde-se os bens, as terras...
É assim que funciona! É possível que alguns deles nem saibam exatamente o
que é geada ou seca no campo ou mesmo
uma enxada, ou coisa do gênero. E o café que tomam, acho, pensam que já nasce moído e torrado. Veja se pode isso?
Voltaram para casa, agora pisando o gelo derretido que
aos poucos revelava o estrago no
capinzal. O verde viçoso do dia anterior estava tisnado, como se um fogo
invisível passasse por ali. Chegaram e patos e galinhas
já faziam algazarras a bicarem um a um o milho atirado. No enorme fogão
as panelas já começavam a fumegar.
Finalmente podiam agora menos preocupados, tomar o café. Ter
todo o resto do dia para descansar e prosear, como gostava de fazer.
Então ele resolveu contar ao neto uma história, a origem
daquela fazenda e do cafezal:
Ainda roendo um pedaço
de pão Pedrinho se alinhou à cadeira de
balanço do avô e ouviu com atenção:
_ Éramos jovens e isso faz muito tempo, bem
antes que um outro tipo de geada tomasse
em definitivo os meus cabelos. Sorriu meneando a cabeça e
continuou: Isso aqui era apenas um sítio. Mas quero falar da geada propriamente dita, a mais forte da
região até hoje e olha que não falo da
geada negra, a mais devastadora.! Nosso pai, filho de imigrantes espanhóis,
além de alguns cereais cultivava também um modesto cafezal que supria o nosso
consumo e ainda rendia uns bons
trocados. Perto disso aqui era uma moita de café, mas dava gosto ver as floradas e as
cerejas maduras de cafés que adornavam a
paisagem. Até que ela chegou e cobriu quase tudo. Essas paragens mais pareciam
aqueles cartões de natal lá da Europa. Não sobrou nada!
__ Nada vovô?
__ Quase nada! Pensamos em destruir tudo queimando ou
arrancando pela raiz. Mas, chateados e
com dívidas até o pescoço abandonamos aquela área. Todavia passados quase três anos resolvemos um belo
dia caminhar por lá. Ai aconteceu. Os olhos do meu pai encheram-se de luz, pois pelas mãos restauradoras da
natureza, o que restara do cafezal condenado
e abandonado por nós, havia não só resistido como estava nevado, sim, nevado,
mas de flores, muitas flores. Até mesmo o capim que normalmente cresce
rapidamente nos carreiros parecia ter respeitado aquela ação da natureza, não
cresceu quase nada. "Um milagre" gritou meu pai erguendo as mãos para o céu. Confiante disso resolvemos então refazer
o cafezal, completar as falhas que haviam e também ampliar a plantação a partir
dali, pois no mercado, o café estava muito valioso. Eliminamos as voçorocas e corrigimos
este solo vermelho cor de telha! O resultado
é o que você acabou de ver!
__ Puxa vovô! Que história linda dá até um livro!
__ Você escreve? Que tal "A geada" como título?
Sugeriu sorrindo."
Pois bem! Na fazenda a prosa se arrastara por toda a tarde e chegara à noite. Isso ajudou
ao fazendeiro esquecer por algumas horas
o problema que martelava em sua cabeça.
A venda daquela safra já
estimada daria um respiro, quitaria as dívidas com alguns credores e ainda lhe proporcionaria um bom lucro. Mas, tudo
isso dependeria da natureza. Até aquecer o ar com fogueiras espalhadas por todo o cafezal foi cogitado, porém logo
desistiram da ideia.
O céu daquela noite estava ironicamente belo. Arqueado
sobre as planícies, mostrava-se
totalmente limpo só empoeirado de estrelas e adornado por uma sorridente lua
cheia que prateava até onde a vista conseguisse alcançar. Céu limpo e a
temperatura baixando gradativamente pintava um quadro não promissor e muito
preocupante para o fazendeiro quanto a formação
de geada.
O senhor Hernandez deitou-se mas não conseguia dormir. A sua
preocupação vencera o cansaço. Sabia da fereza com que a natureza muitas vezes
é capaz e ficou a cismar.
__ Durma meu velho. Seja o que Deus quiser!... Disse vovó
Aurora quase sussurrando e apagando a luz principal. O homem respondeu com um
longo muxoxo e virou-se de lado.
Enquanto isso pela janela do quarto de hóspedes o menino
Pedrinho, deslumbrado e despreocupado contemplava a vastidão daquele céu, uma espécie de magia, coisa que jamais
vira na cidade.
(Pseudônimo: Alazão)
nov. de 2018
A MESMA PAISAGEM
Ah! Aquela gente. Conheci muito aquela gente.
Gente brava do sertão, gente fiel às coisas lá do céu, sempre cumpridora das
suas promessas, embora também muitas vezes vivendo de promessas vãs.
Gente que embora baldadas todas as
esperanças, mesmo assim se mantinham serenas na luta repetindo palavras de
resignação. Resignação que muitas vezes
era sinônimo de êxodo!
Nessa altura os providos de asas já
haviam arribado. A roça não vingara, o umbuzeiro definhava aos poucos. Somente
o xiquexique ainda resistia parecendo desafiar o sol inclemente com seus agudos
espinhos e suas flores vivazes. Os sons dos chocalhos nos animais, assim como os aboios pelas
caatingas, há muito tempo já não se ouviam.
Foram tempos de secas terríveis. Do quê
valeram as coivaras se tudo se resumia afinal, numa queimada só? O lugar
tornara-se inóspito e o solo estéril, como um planetoide perdido e hostil,
sendo bombardeado por cargas e cargas de raios flamejantes. Um planetoide
habitado por sertanejos, que por mais bravos que fossem, num momento, tinham
que desistir.
A família de Moisés foi uma das últimas
a partir. Do pouco que tinham, pouca coisa eles levavam, mas a esperança não
era pouca. Apenas se retiravam como
um regimento se retira estrategicamente para depois em favoráveis condições,
promover o contra-ataque colocando o inimigo à sua mercê. Retornariam assim que
o verde retornasse por aquele sertão que ora deixavam pela segunda vez.
Antes da partida, vovô Venâncio, num de
seus momentos de lucidez, insistiu para que levassem também um pedaço de tição
que se afigurava a uma imagem, que acreditava fosse de uma santa... Aquela
imagem tosca esculpida pelo fogo era o arauto das boas novas que haveriam de
vir. Assim acreditava o velho senhor. Sua vontade foi respeitada, embora
contrariasse a Moisés, homem há muito tempo descrente das coisas da igreja, não
das coisas do céu.
Partiram antes de o sol chegar. Na
boleia da velha carroça se acomodavam Maria, grávida de quatro meses e Venâncio
seu sogro. O menino João acompanhava o pai marchando com suas franciscanas
sobre aquele chão esturricado e poeirento.
O céu era de um azul vivo e limpo, só
perturbado por nuvens negras movendo-se mansamente. Nuvens carniceiras se
equilibrando no ar quente que sobe, com seus olhos aguçados, e girando em
grande círculo só aguardavam a hora e vez... Aliás, as únicas providas de asas
que não arribaram.
Passaram por leitos secos de ribeirões,
por glebas abandonadas e por várias carcaças de animais que visto de longe mais
pareciam quilhas expostas de antigas embarcações.
Após um dia de viagem aportaram num
pobre vilarejo. Depois de tanto tempo se alimentando basicamente de jacuba
(água misturada com farinha de mandioca e açúcar) experimentaram o luxo de um
naco de pão.
- Estão indo pra onde? Perguntou o
vendeiro.
- Pra capital. Respondeu Moisés ainda
mastigando.
- Mais uma semana fecho aqui e também
vou embora, se não a gente também morre feito gado no campo. Disse.
- É, essa é a pior que já vi por essas
bandas. A última chuva que caiu faz quase um ano, e só serviu pra engabelar.
Nem deu pra molhar as cacimbas.
Estendeu-se Moisés.
- É verdade, nem São José ta dando
jeito. Mas se Deus quiser, as coisas melhoram. Amenizou o vendeiro.
- Tomara! Concluiu Moisés pagando a
conta.
Naquela noite ficaram por ali mesmo.
Moisés desatou a mula da carroça dando-lhe um fôlego, pois no dia seguinte
atravessariam o pior trecho até a cidade mais próxima.
Sob um céu empoeirado de estrelas,
dormiram. Menos Moisés que passou a noite toda em vigília, com a alma
amargurada e os olhos brilhantes como aquelas estrelas.
No dia seguinte, antes que a barra do
horizonte sangrasse, partiram.
O chão rachado parecia um estranho
mosaico, mas lá em cima, o céu com sua imponência azul, continuava com aquelas
nuvens negras girando, girando. A marcha prosseguia árdua, cansativa,
constante. Somente o reboar dos cascos
naquele chão duro quebrava aquele silêncio, além dos redemoinhos que, de vez em
quando atravessavam o caminho que seguiam. Girando e assoviando, pareciam entes
zombeteiros com suas bocarras assoprando as coisas do chão.
Na tardinha quando o sol poente
espichava as sombras pelo chão, após terem caminhado algumas léguas, a velha
mula deu sinal de fadiga. Extenuado, o
pobre animal dobrou os joelhos. Moisés e o filho João tentaram debalde
levantá-la. Com a boca branca de espuma e os olhos vidrados ela deu um breve
suspiro e morreu. Era sem dúvida mais um banquete para aquelas famigeradas
nuvens lá em cima.
Jogados então à sorte, permaneceram por
um bom tempo ali na margem da estrada.
Maria, como era de costume, assim que
pressentiu a tardinha, agarrou a rezar. E rezava todas as rezas que aprendera
desde menina e o que aprendera não era pouco. Seu Venâncio permanecia estático,
sem atinar em nada. Por sua vez, Moisés sentindo-se incomodado caminhou uns dez
passos para frente e sentou-se sobre uma grande pedra e lá permaneceu quase
imóvel como se fizesse parte da mesma até o término da ladainha. João o
acompanhou.
O sol insistia com seus últimos raios
quando um caminhão levando algumas famílias apareceu em meio a uma densa
poeira. Por sorte se dirigia para o mesmo destino. Embarcaram.
A imensa serra ficando para trás, já se
apequenava no horizonte. Mais parecia
um risco azul-escuro já quase consumido pela distância e o negrume da noite. O
ronco luxuoso do motor e os sacolejos constantes induziram ao sono aquele homem
alquebrado, abichornado. Moisés sonhava com um lugar onde os liquens cobriam
eternamente as pedras. Onde um simples
golpe de enxada liberava o cheiro fértil de um chão úmido, e as veredas perenes
trazendo abundância e vida para todos.
Porém, a freada abrupta do caminhão,
cortara-lhe o fluxo que alimentava aquele sonho sonhado! Chegaram. A realidade
era amarga, seca, empoeirada. Cheia de cansaço e dúvidas.
Era uma cidade pequena, que embora
também sofresse as consequências da seca, ainda assim resistia.
Aquela noite passaram sob a marquise de
uma acanhada estação rodoviária. No dia seguinte condoído com aquela situação,
um conterrâneo dividiu a própria casa com eles. Embora agradecido pela ajuda
daquele Cirineu moderno, Moisés sentia-se humilhado. Seu orgulho de homem
acostumado com a lida no campo estava ferido. Para ele, um homem sem teto e
trabalho valia menos que uma folha que se desprende de uma árvore. Então,
possuído por uma ira desmedida apoderou-se da primeira coisa que viu à sua
frente. O santo do pau queimado. Sem que ninguém notasse atirou-o no mato que
havia do outro lado da rua e blasfemou muito!
Na tarde daquele dia seu Venâncio,
saindo momentaneamente do estado de ausência, deu por falta do seu objeto santo
e ficou nervoso.
- No desembarque do caminhão deve ter sido
extraviado. Disse Moisés sem hesitar
olhando para o infinito. Em poucos minutos o velho voltara à sua normalidade e
a história do objeto santo foi esquecida.
Passado
uma semana, a preocupação de todos agora, era conseguir dinheiro para a passagem
que faltava. Trabalho era difícil, e o ônibus que seguiria para a capital
partiria dali três dias.
Então resolveram abrir uma cabaça que
muito pesava e que o velho guardara por muitos anos, com muito esmero e
ciúmes. Aquilo era um segredo enorme
para todos, menos para João. Aproveitando o estado de ausência do velho
apoderaram-se do objeto.
Assim que a entornaram, uma espessa
entranha metálica saltou do bojo escorrendo pelo chão batido. Eram moedas, sim,
muitas. Uma alegria então percorreu a face de todos. Porém aquele metal
escurecido e barulhento, já não tinha mais valor de troca. Já estava fora de
circulação há muito tempo. Decepcionado e nervoso, Moisés saiu para fumar
enquanto sua mulher e o filho devolviam aquelas inúteis moedas para o
improvisado cofre.
Mas o espírito do velho, parecia querer
desistir de seguir a viagem. No dia
seguinte aconteceu um corre-corre. O velho Venâncio sofrera outro mal súbito.
- Doutor por aqui? Só uma vez por mês, e
quando vem! Disse um morador. E concluiu – melhor procurar o seu Caculé, o
raizeiro daqui. Esse já curou muita
gente com suas garrafadas.
- Onde? Perguntou Moisés com o rosto
franzido de sol.
- Meia hora a pé por aquele caminho,
indicou o homem com a ponta do cachimbo.
Agradecendo, Moisés e João saíram
apressados.
Andaram um bom pedaço
quando deram com uma multidão em frente a um casebre.
-Caculé, o raizeiro? Perguntou Moisés
ofegante.
- Não! Na quinta casa descendo. Disse uma mulher.
- E o que é isso aqui? Inquiriu.
- Milagres! Responderam três ao mesmo
tempo.
Explicaram-lhe que uma santa de madeira
fora encontrada num lugar ali perto, e trazida para casa começou a realizar
milagres. Muitos milagres.
Então curioso, resolveu ele atestar isso
de perto.
Com muito custo conseguiram chegar até
uma tosca janela que dava para o único cômodo da casa. Então ficaram perplexos
ao verem o motivo real daquela epifania que alvoroçava toda aquela pobre gente.
- Olha lá pai, aquilo não é a santa do
vovô?
De início o homem ficou reticente,
depois bradou para que todos ouvissem.
- Pois é sim, aquele pedaço de tição que
mal cozinhava o feijão, agora faz milagres! E saiu balançando a cabeça e se
acotovelando naquela multidão pobre e carente até ganhar a rua.
A sua perplexidade só não foi maior,
porque não vira o que seu filho João presenciara. As pessoas pagavam com o que
podiam, para chegar perto da tal divindade... Não que a dona da casa exigisse,
mas as promessas de milagres eram tentadoras.
Quando retornaram trazendo a garrafa
prescrita, encontraram Maria aos prantos, nervosa.
O velho não resistira. Consolando um ao
outro, fizeram a única coisa que podiam. Sua marcha pela terra findara. Envolto num morim puído o seu corpo entregue
ao chão, logo se integraria àquele pó vermelho que há muito tempo também não
recebia o afago da chuva. Nem padre
havia naquele momento para encomendar a alma daquele pobre homem. Disseram que
estava num almoço lá na casa de certo coronel. Sem lápide, apenas uma pequena
cruz marcada com um número, indicava o local.
Com
a ausência do velho Venâncio, ironicamente o dinheiro que possuíam foi a conta
exata para comprarem três passagens.
Consternados, finalmente partiram. Para
trás, deixavam uma significativa parte da vida, e levavam consigo muitas lembranças. Para o
futuro, mesmo sabendo das dificuldades, o sertanejo carregava muita esperança.
No ônibus indo para a capital a marcha continuava. Lá fora uma lua solidária viajava também.
Moisés, liderava a marcha
conduzindo a sua gente atravessando o agreste e a insolação vermelha em busca
de uma nova Canaã.
Um conto de José Alberto Lopes-
SBC-19/07/2012
[edição melhorada em 10/05/2013]
Interurbano
a cobrar
“Casar filhas é como queimar a própria casa”.
Li isso certa vez em algum lugar. Pelo menos assim foi para o senhor Hiroshi e
a senhora Keiko. Eles já haviam vividos essa situação por três vezes. A última
e definitiva foi com a caçula Asako.
Dizem
também que um escritor quando perde a vontade de escrever, morre. Perder
o colorido da vida só porque casam filhos, é bem parecido, principalmente para
algumas mães como a senhora Keiko, pelo
menos por alguns momentos da sua vida. Uma vez por ano as filhas vinham
visitá-los, umas já trazendo netos, mas isso não bastava à senhora.
O senhor Hiroshi parecia pelo menos aparentemente, ter
assimilado melhor as ausências, mesmo assim, às vezes, deixava se abater. Mas,
Keiko se queixava o tempo todo. A casa e o quintal agora mais amplos, de certa
forma os incomodavam. Às vezes tinha-se
a impressão que aquele silêncio absoluto que envolvia o ambiente poderia ser
interrompido a qualquer momento pelas algazarras sadias das crianças.
Na verdade o único ser que ainda
continuava fazendo festa todos os dias era o velho cão da família que vivia
deitado na soleira. Todas as manhãs
quando abriam a porta da casa, entrava Rex rapidamente, e lá ia o pesado animal
troteando sobre o assoalho encerado da casa, visitando um a um os quartos das
meninas, agora vazios.
Num sábado logo de manhã o senhor
Hiroshi chegou da praia trazendo lindas pescadas-brancas. Era costume se
comprar peixes ali na praia e ele regularmente o fazia, mas era dona Keiko quem
regularmente os limpava. E não foi diferente naquela manhã. Hiroshi como
sempre, preferia cuidar da pequena horta, e
assim o fez. Depois se acomodou numa rede que ficava na área dos fundos
para ler um jornal. Enquanto lá na cozinha pacientemente limpava os peixes, dona Keiko não deixava por menos, cobrava dele insistentemente
alguns afazeres:
- Hiroshi!
- O que foi?
- Olha! Você precisa trocar a lâmpada
do corredor né!
- Sim, depois do almoço.
-
Você diz isso faz tempo.
- Hoje eu prometo.
- Ah! A torneira do banheiro.
- O que tem ela?
- Está pingando.
- Vai ver está resfriada!
- Não tem graça...
Ora, por causa do cheiro forte de peixe, os telhados e muros
vizinhos estavam fervilhando de gatos. Aos poucos esses desconfiados felinos
desciam e se aproximavam sorrateiramente da mesinha onde a senhora limpava as
pescadas.
Rex por sua vez já na larga idade em que se encontrava, parecia
ignorá-los ou quem sabe tolerava-os.
De quando em quando dona Keiko lançava bem longe dali um punhado de
tripas e guelras para se livrar dos bichanos. Porém, mal dava as costas e lá
vinham os pedinchões novamente... O quintal era uma sinfonia de miados.
Eu sempre ouvi dizer que gatos têm medo
de água. Então por que gostam de peixe? Bem, é que gostam de peixe e não de
água, deve ser esta a resposta....
Naquela rede, seu Hiroshi que há uns
minutos fora vencido pelo sono, quase teve um troço. Acordou espavorido por
causa dos gritos estridentes de dona Keiko.
- Hiroshi meu velho!
- O que foi mulher?
- Venha ver o que encontrei dentro do peixe!
- Já estou indo.
- Venha, é uma pérola grande e azul.
- Uma pérola dentro de um peixe? Azul?
- Sim,
Corre!
Dona Keiko não se conteve, apanhou
o tal peixe e correu para a varanda a
fim de se vangloriar de seu achado. Não deu três passos e o peixe lhe
escorregou das mãos. Um rajado muito esperto cruzou-lhe o caminho e num salto
certeiro abocanhou aquele belo exemplar
e desapareceu pelos quintais afora.
- Não acredito, não! Lastimou dona Keiko toda pintalgada de escamas.
- O que foi?
-
Droga de gatos...
- Maldito gato! Vou pegá-lo. Exclamou
Hiroshi com os olhos ainda meio pregados de sono.
- Como? Nem sabemos para onde foi.
Desapontada dona Keiko foi
consolada pelo marido que num sussurro
ainda lhe perguntou:
- Era grande?
- Sim, nunca vi igual.
- Uma pérola assim tão grande deve
valer uma nota não? E ainda, dentro de um peixe? Perguntou ele com um olhar maroto.
- Deixa pra lá, você está pensando que
fiquei louca.
- Não é isso querida, olhe para o seu
bracelete de plástico!
- O quê? Caiu uma bolinha, então foi
isso? Oh! Que vergonha!
- Vergonha não, e se não fosse
bijuteria? Disse ele fingindo austeridade.
Meio aborrecida, Keiko voltou aos seus
afazeres na cozinha e logo atrás se desculpando seguiu Hiroshi oferecendo
ajuda. Logo a camaradagem entre eles voltou a reinar. Almoçaram e foram depois
para a varanda fazer a sesta. Lá, aquela rede os esperava. A tarde estava azul
e nenhuma nuvem por testemunha. O cheiro forte de peixe já havia desaparecido e os gatos também.
- Meu velho!
- Oi.
- Lembra-se das meninas correndo pra lá
e pra cá?
- Lembro sim. Às vezes, parece que as
vejo pedindo colo...
-
Sabe meu velho, às vezes sinto que arrancaram três pedaços de mim.
- Não deixe esses sentimentos lhe
dominarem, faz mal a você. Além do mais,
elas estão casadas e bem casadas. Agora têm vida própria, filhos, maridos.
- Eu sei disso, é que o tempo passou
tão rápido... e ainda não consegui aceitar
essas coisas.
Um silêncio contemplativo pairou por um
instante.... depois rompeu seu Hiroshi:
- Acho que estamos ficando velhos!
-
Eu, nem tanto. Sorriu dona Keiko meneando os próprios cabelos recém-tingidos e
o rosto empastado de creme anti-rugas.
Sorrindo, disse seu Hiroshi:
- Sabe? Certa vez li uma frase que dizia assim: “A poesia consagrada com o tempo, não mais pertence ao poeta,
pertence ao mundo embora tenha lá a assinatura dele” Acho
que assim também são os filhos.
- Então nossas meninas são as nossas poesias! Afirmou.
-Sim, isso mesmo, e belas poesias, frutos da nossa inspiração! Sorriram..
De mãos dadas e rostos colados, e
bafejados pela brisa suave que vinha do
mar, aos poucos adormeceram... A rede, na sua inconstância, não demorou muito e
também se aquietou.
Acordaram tempo depois com o apito do
amolador de facas que passava pela rua. O dia já zanzava por outros
horizontes. Entraram, menos Rex que
apareceu com as patas lambuzadas de amoras maduras. Prepararam o chá costumeiro
e nem bem se sentaram à mesa, o telefone tocou, Era Akemi a mais velha, ligando
do Canadá e avisando que em uma semana chegaria para ficar. Separara-se
definitivamente. Trazia malas e dois filhos. Isso causou um espanto e mal estar
muito grande no casal de velhos, posto que até aquele momento o casamento de
Akemi parecia sólido.
Porém, mais uma surpresa estava a caminho. Uma hora depois o telefone tocou
novamente. Agora era Amaya a filha do meio. Voltava também de mala e cuia, com
um filho no colo e outro na barriga.
Rompera com o marido pelo menos por algum tempo... disse ela
choramingando.
“Casar filhas é como queimar a própria
casa”... Isso já foi dito! Porém, da forma como estavam acontecendo as coisas,
não seria demasiado dizer que a casa do casal de velhos, logo arderia em chamas
novamente, agora, de forma inversa.
Após terem assimilado o susto, embora
tristes pelas separações, o senhor Hiroshi já no dia seguinte encarregou-se
daqueles afazeres... Trocou a lâmpada do
corredor, fez o reparo na torneira que pingava, além de outros que se faziam
necessários para a acomodação de toda aquela gente.
Naquele
domingo, na parte da tarde, um interurbano a cobrar. Agora era a caçula
Asako que residia em Manaus. Dona Keiko atendeu, e por um instante
ficou pálida, estática. Seu Hiroshi, por seu turno ameaçou levantar-se e sair
da sala, mas logo tudo ficou bem. Era apenas uma ligação de rotina.
Dona Keiko e seu Hiroshi se
entreolharam e respiraram aliviados...
Um
conto de José Alberto Lopes®
SBC-SP.
16/04/2010
A Casa de Orates
Chovia naquela quarta-feira na
interiorana cidade de Jambeira. Suas poucas ruas estavam desertas. Ou quase,
pois uma figura furtiva, metida num sobretudo, caminhava pela rua dos remédios.
Em frente ao número 55 parou e tocou insistentemente a campainha.
- Há alguém em casa? Gritou o
forasteiro.
- Um momento! Gritou o de dentro, e
concluiu: - A quem devo receber?
- O doutor!
- O doutor?
- Sim exatamente ele!
- Então vamos entrando Doutor Abrantes,
sou Messias, o sub gerente da casa. Mas então o senhor resolver antecipar os
dez dias?
- Mudanças de planos meu caro homem,
mudanças de planos. Mas a propósito, pode me chamar somente de Doutor, assim
fica mais fácil!
Finalmente chegara aquele que assumiria
o cargo de diretor geral do manicômio de
Jambeira. Era formado pelas melhores escolas de psiquiatria da França e Áustria.
Veio para substituir o anterior que fora afastado por senilidade. Acumularia as
funções de diretor e alienista. Não era velho nem moço. Seu nome era Abrantes
Fróes, aliás, Dr. Abrantes Fróes. Ficaria residente na casa.
Após livrar-se das roupas e sapatos
encharcados, as acomodações da casa foram a ele apresentadas.
Na manhã seguinte, acompanhado por uma
pequena comitiva, Abrantes visitou as
outras depedências da casa inteirando-se dos problemas e rotinas. Após a
integração, passou imediatamente a despachar do seu gabinete exigindo agora
relatórios diários sobre todas as ocorrências na casa. Também introduziu
métodos mais severos de tratamento e enrijeceu a disciplina. É evidente que as
mudanças radicais naquilo que há muito já era rotina acabaram desagradando a
todos.
Dentre os internos que ali residiam,
alguns se arvoravam ser pessoas famosas, mas Botelho Guimarães Rocha ao
contrário, não se intitulava ou admirava qualquer vulto famoso, mas acabou ele,
ganhando notoriedade ao protagonizar a incrível história que se passou lá no
manicômio de Jambeira.
Estava na casa já havia três anos.
Tinha a mania de perseguição e jurava que as mudanças impostas pelo novo
gerente tinham por objetivo prejudicá-lo. Haveria um complô contra ele.
Repetia.
Embora não houvesse qualquer parentesco
entre Botelho e Abrantes, havia sim, certa semelhança física entre eles. “cara
de um e focinho do outro”. E some-se a isso a voz e até uma pinta de nascença
que os dois possuíam no mesmo lugar no rosto. Porém com uma diferença bem
sutil... Botelho apresentava um arremedo de cabelos no cocuruto, enquanto
Abrantes era lá provido de boa e bem cuidada cabeleira.
O que se viu naquela noite foi um
Botelho ensimesmado além do normal e muito preocupado, zanzando pra lá e pra cá
em seu quarto tentando desvendar em seu
imaginário o que de fato os bastidores tramavam contra ele.
Assim que amanheceu resolveu tirar tudo
a limpo. Para isso, disfarçou-se de enfermeiro. Na lavanderia conseguiu
facilmente o que precisava e marchou resoluto até o gabinete do doutor. Já no
corredor aproximou-se da porta e bateu:
- Quem é?
- Sou eu o enfermeiro!
- Entre! Mas não me lembro tê-lo chamado.
- O senhor me chamou!
- Não me lembro!
Botelho então percebeu as dificuldades
que enfrentaria para engrenar uma conversa com aquele. O muito que conseguia
eram respostas lacônicas, às vezes sem nexo. Os olhos do doutor sequer viram a figura de Botelho, estavam fixos numa
papelada sobre a mesa.
- São os relatórios? Insistiu Botelho.
- Hum!
- O que dizem? Atreveu-se.
- Não me lembro!
- Do quê?
- Ah! Agora me lembro, pedi um barbeiro, você é ele?
Então Botelho com um olhar ladino, era
louco, mas , não burro, respondeu:
- Sim, sou eu! Só preciso descer e
apanhar os apetrechos.
- Não precisa, tenho tudo aqui naquele
armário, atalhou o doutor.
A sorte parecia voltar para o lado de
Botelho, afinal, barbeiros e fregueses costumam conversar sobre tudo. Mas veio
a decepção. O máximo que se ouviu dele desta vez foi um resmungo pedindo pressa
no serviço. Era mesmo do tipo que não dava trela pra qualquer um. “Que maçada,
por nada faço a barba desse sujeito” Pensou ele furibundo, quase desistindo.
Mas continuou terminando de escanhoar aquele
rosto grande.
De súbito num ato involuntário, tocou
de raspão o cocuruto do amargo freguês.
Diante do inusitado Botelho ficou
boquiaberto, mas foi só por uns segundos, pois logo desandou a gargalhar e
perguntou em tom irônico:
- Então o senhor usa uma peruca?
- Passa ele pra cá! Ordenou o Doutor.
- Não! Respondeu Botelho fazendo
gracejos.
- Dê-me logo!
- Já disse que não!
E assim, experimentou-a mirando-se num
espelho que ali havia.
Sem muito que fazer saiu o Doutor
desesperadamente pedindo por socorro. Socorro que imediatante chegou.
Foi uma cena antológica, ridiculamente
cômica. Os brutamontes da segurança colocaram o então doutor numa camisa-de-força
e o arrastaram escada abaixo, apesar dos
protestos e ainda teceram cuidados ao
outro, o agora falso doutor.
Devido a semelhança já apontada entre
eles, a peruca deu o tom perfeito à
burla, tanto que se o próprio diabo, a quem chamam também de ladino, se ali
estivesse, com certeza também seria enganado.
Na casa existia um local a que chamavam
de quartinho escuro. Uma invenção do próprio doutor Abrantes. Uma espécie de
sossega-leão aos mais exaltados, e ironicamente foi ele mesmo quem o inaugurou.
Enquanto o Doutor, sem a peruca, provava do seu próprio veneno, Botelho, com a
peruca, agora posando de diretor geral do manicômio é quem dava as cartas.
O seu primeiro ato foi revogar todos os
atos anteriores impostos pelo doutor Abrantes. O segundo ato foi transformar o
manicômio em um externato para alienados... Porém, a maioria deles nunca
retornava, e isso criou um sério problema de segurança para a pacata cidade de
Jambeira.
Mas no terceiro dia aconteceu o revertério.
À noitinha quando o silêncio já permeava os corredores da casa, saía do
desterro um homem enfurecido, humilhado, levado e tratado como qualquer, sem o
merecer dizia Abrantes para os próprios botões. - Como pode isso a um
catedrático?...
Viu a janela entreaberta do quarto que
por justiça ainda lhe pertencia, no qual dormia injustamente o seu desafeto.
Pela varanda
escalou sorrateiramente a janela e
ganhou o quarto. Um pequeno abajur de uma luz frouxa dava ao ambiente um ar de
conforto, diferente do quartinho escuro.
Lá estava o homem roncando feito um
porco tomando sol. Por sorte dormia sem
a peruca. Sobre a mesa do abajur,
estava o objeto da discórdia, mas nessa situação era preciso muita cautela para
que o outro não acordasse. E pé ante pé, apanhou-a e com destreza vestiu-a num
segundo. Logo alcançou a porta e com mãos de veludo abriu-a, e estando do lado
de fora gritou com toda força de seus bofes...
- Socorro! Há um louco no meu quarto!
- De novo? Disse um daqueles que
acudia.
Era o segundo ato de indisciplina
naquela mesma semana e pelo mesmo indivíduo... Essa reincidência valeu castigo dobrado lá no quartinho escuro.
Então, tudo voltou como antes na casa e
Abrantes...
As mudanças de ordem assim tão abruptas, já infernizavam
a cabeça dos funcionários. Disse um em tom irônico: “Isso tá parecendo um hospício”
Todavia, um problema grave carecia de
solução imediata, urgente. Tratava-se
daqueles internos liberados. Não mais retornando, precisavam ser encontrados e
recolhidos a todo e qualquer custo. Já não tinham em conta quantos eram.
Para isso, uma
comissão se reuniu e criaram uma
operação chamada de : “Operação jambeira”. Sem escrúpulos, alguns agentes dessa
operação acabaram cometendo exageros. Foi uma espécie de caça aos hereges..
Muitos cidadãos jambeirenses que nada
tinham com a história, foram taxados ou confundidos com aqueles alienados e
acabaram na mesma malha, passando também a hóspedes do manicômio, pelo menos
até segunda análise. Foi um descalabro. A cidade sentia-se insegura, mais
ameaçada do que antes. Todos fugiam apavorados diante de um corvo-campeiro, era
assim que o povo chamava os agentes da operação.
Com isso, o
comércio já não abria e nas repartições
públicas foi decretado ponto facultativo até que as coisas melhorassem. Mesmo
que arriscando, quisessem assistir a uma missa, o ato de fé ou obrigação não
seria possível, pois até o padre da cidade fora também recolhido. Ninguém
ousava mais sair de casa. No final das contas, a cidade estava sitiada pelos
agentes e já beirava a loucura... Por que não dizer: “Jambeirava a loucura”? ,
frase que tomo emprestado de um cronista da capital que andou escrevendo sobre
o entedioso caso.
Aqueles
residentes arbitrariamente recolhidos já estavam em pé-de-guerra. A
iminência de um motim era fato. Porém o padre que ali também estava, procurava
acolhê-los com palavras de fé e esperança. Pregava com ar resignado as boas
novas que haveriam de vir depois daquele flagelo. – Primeiro o sofrimento,
depois o regozijo. Dizia ele sob os
olhares atravessados e irados da turbamulta.
Era período de eleições municipais. A
caça aos alienados dispersos, já se
dissolvera. A cidade timidamente voltava ao seu normal. Porém, os que foram
recolhidos, recolhidos continuavam, até
o momento em que os políticos da cidade interferissem pessoalmente na questão. Apressada as análises, por fim,
aqueles foram liberados.
Enquanto isso, Botelho cumpria máximo
isolamento no tal quartinho.
Mas como nesse mundo nada é para
sempre, numa manhã bem cedinho em que ainda chovia, uma sirene estridente
começou a tocar bem em frente ao número 55 da rua dos remédios. O barulho era
tanto que parecia que uma catástrofe havia acontecido. Num instante toda a
cidade e o manicômio já estavam em pé.
Lá fora estava um furgão azul-escuro
enlameado até as portas.
Então do funesto carro saltaram três
enfermeiros e o motorista. Eram
funcionários de outro manicômio com um
mandato para resgatar um tal de Doutor ali identificado, e que de lá havia fugido há mais de dois meses. Lá
em Pedralba, esse homem era interno dos mais problemáticos. Lá já aprontara
tantas e boas, apesar da rigidez daquela casa.
Como demonstrasse certa
agressividade, vestiram-no com uma camisa-de-força e diante dos olhares
perplexos de todos, ele se despediu aos gritos prometendo voltar em breve.
Botelho ainda teve tempo de vê-lo sair
arrastado portão afora e suspirou aliviado.
Três dias após o episódio, numa manhã
bem cedo, a campainha do número 55 da rua dos remédios, alarmava
insistentemente:
- Há alguém em casa? Gritou o
forasteiro.
- Um momento! Gritou o de dentro. E
concluiu: - Bom dia, a quem devo receber?...
Era finalmente ele, o verdadeiro Dr.
Abrantes Fróes. Caminhou casa adentro com uma fisionomia arrastada, sob os
olhares oblíquos dos funcionários.
Um conto de
José Alberto Lopes.®
SP. 19/06/2009