Depois que aquela cabana
passou a ser habitada, tudo por ali ficou mais alegre e vistoso.
O senhor Kensuke e a senhora
Yumi viviam felizes tirando da terra o que a terra lhes devolvia graças ao
trabalho árduo e dedicado.
Além das hortaliças a senhora mantinha
também um lindo jardim que ficava em frente à cabana.
Todos que por ali passavam
ficavam maravilhados, não somente com o
colorido das flores, como também pelo capricho com que ela se dedicava aos bonsais
e também aos arranjos de flores.
Uma cerca baixa feita de bambu
onde se agarravam democraticamente um pé de bucha; uma aboboreira e flores de
ipomeia, circundava a gleba onde moravam.
Um vento fraco parecia anunciar
mudanças no tempo. Chegara noite e na
aldeia tudo era silêncio, exceto pelos coaxares que vinham próximo de uma
pequena plantação de arroz logo abaixo.
O casal já se preparava para
se recolher quando uma voz rouca chamou:
- Olá de casa! olá! Podem me
ajudar?
- Quem é a essa hora? Perguntou
o senhor Kensuke meio retraído e abaixando a luz do lampião.
- Um peregrino procurando um
canto para passar esta noite!
Com determinado cuidado abriu
a porta, levantou o lampião conferindo o estranho e depois convidou-o a entrar.
O vento agora soprava mais forte.
Era um homem de meia idade e
com roupas bem simples carregando um alforje surrado feito de pano grosso.
Tirou o chapéu curto e ainda se apoiando num bastão de bambu agradeceu a
acolhida. Na cozinha avivaram o fogo quase borralho e serviram-no uma sopa
quente e um chá de algumas folhas.
Num cubículo contíguo onde costumavam guardar
sementes e algumas ferramentas, um tatame estendido sobre palhas secas e um
velho cobertor deram ao peregrino uma noite reparadora após um dia inteiro de
caminhada!
Porém, o velho demorou a
dormir. Já era hábito seu deitar-se e ficar um bom tempo recordando tudo o que acontecera
durante o dia de caminhada. Os lugares; as pessoas; as paisagens, e tudo ele
anotava, pois esses eram como argumentos que lhe inspiravam a escrever. Então
ficava ruminando aquilo até que finalmente o sono lhe arrebatasse.
Amanheceu e o vento havia
parado, porém, trouxe uma chuva muito forte. Uma chaleira fumegava sobre a
chapa. Fazia frio lá fora e a cozinha era agora o lugar mais confortável da
cabana. Mas, o peregrino estava mesmo muito preocupado com o fato de a chuva
não parar porque isso retardaria a sua chegada ao destino.
Não demorou e a senhora Yumi
trouxe uma bacia com água morna e duas toalhas. Enquanto enxugavam os rostos,
conversavam:
- O senhor vai para onde?
Perguntou o dono da casa.
- Para o templo da montanha
visitar um grande amigo de infância. Mas acho que me perdi no caminho, por isso
não consegui chegar ao albergue que fica no sopé dessa montanha. Respondeu ele
olhando a chuva pela pequena janela entreaberta. E continuou: - Já há muitos
anos renunciei à vida urbana. Prefiro andar pela vida junto à natureza buscando
conhecimento e inspiração para escrever. Sem apegos sinto-me mais feliz..
Cansar destas viagens é bem melhor do que se cansar da cidade.
Diante dos olhares do casal,
um misto de espanto e curiosidade, o velho abriu seu alforje e de lá retirou
uns papéis pardos e tinta além de uma pena e começou a rabiscar. E foi com
apurada concentração que passou a escrever sem parar, como aquela chuva que
caia, e isso aguçou ainda mais a curiosidade dos dois. “O que escrevia aquele
homem com tanta dedicação?”
- Deve ser alguém com muito conhecimento, viu
como fala e como escreve? Sussurrou a
senhora. O marido apenas franziu a testa concordando.
A chuva deu uma amainada e
dentro da cabana o que mais dava para ouvir além do crepitar da lenha, era o
rangido da pena sobre o papel. O fogão já cozinhava o almoço mas o chá, esse era imprescindível.:
- Senhor! O chá.
- Ah! sim. Obrigado. Disse ele
à senhora agradecendo de forma respeitosa como sempre fazia.
A senhora Yumi então
aproveitou esse momento para matar a sua curiosidade. Foi com muita discrição
que passou os olhos de relance sobre a
mesinha e perguntou:
- Me desculpe senhor, são
poemas?
- Sim, haicai, uma forma de
poema. Conhece?... gosta de escrever também?
- Sim, gosto.
- Quer tentar o haicai?
- sim!
- Então observe, pois ele pode estar na
janela, na chuva, aquecendo-se perto do fogão, na palha, na floresta..... é só
abrir a sua alma. Explicou ele pausadamente com a paciência que lhe era
peculiar.
Quando a chuva parou de vez,
já era madrugada do outro dia. O céu amanhecera coalhado de estrelas. Nem
parecia que todo aquele aguaceiro havia
caído. Aromas agradáveis das folhagens e
flores noturnas ainda vagavam pelo ar. Assim como de noite um pouco da luz do
lampião fugia por algumas frestas da
cabana, de dia, logo de manhã parecia que o sol trazia tudo de volta e passando pelas frestas se projetavam na tosca parede
com imagens fantásticas, surreais. Ao mesmo tempo que observava
essas imagens o velho peregrino também se preparava para partir. Em seu
alforje, além dos papéis e tinta, iam também algumas tangerinas e caquis para a viagem.
Mas, foi o chá mais uma vez quem deu as
honras. Servindo-lhe o chá da manhã e desta vez um pouco tímida, a senhora Yumi
mostrou-lhe uns haicais que havia escrito a noite passada. O velho os examinou
demoradamente. Depois, movendo as grossas sobrancelhas brancas, disse:
- A senhora, excelente Haijin!
A senhora Yumi não cabia de
contentamento e orgulho. O senhor kensuke apenas a olhou por cima dos pequenos
óculos e sugeriu para que o peregrino
ficasse mais um dia até que os caminhos estivessem secos. O velho agradeceu
mais uma vez pela hospitalidade recebida, mas estava determinado e continuou:
- Bem! Agora tenho que ir, o
sol logo arde e a estrada deve estar morrendo
de saudades deste velho andarilho. Adeus
minha gente, adeus.
E numa despedida mais de
olhares e acenos, o peregrino fincou pé no caminho, agora com mais vigor.
Quando virou-se para olhar
mais uma vez, a cabana já se perdera entre umas ramagens. Mesmo assim acenou
levantando o seu bastão. No mais, somente o som da mata.
Depois da chuva a rotina
voltara ao lugar, agora, acompanhada de um vazio. Porque aquele homem sábio na
palavras ocupou não somente o espaço da
casa, mas, principalmente e para sempre, o coração da senhora Yumi e do senhor
Kensuke.
Todavia mesmo em meio a esse
sentimento a senhora Yumi teve uma ideia bem original. Em pequenas tabuletas
feita de madeira ela passou a escrever seus haicais e os fincava junto às
flores.
Os moradores que ali passavam,
se já se maravilhavam com aquele jardim, agora tinham mais um motivo.
Conta-se caro leitor, que com
o passar dos anos vários aldeões da redondeza aprenderam também a escrever haicais,
graças a um sábio poeta que por ali
pernoitou e que nunca mais fora visto, e principalmente por causa do jardim da
senhora Yumi.
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