quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Praia de musgos









Praia de musgos




Quando Vargas desceu no largo da igreja de Bom Jesus e respirou uma cidade ainda pouco mudada em mais de quarenta anos, sentiu-se novamente em casa. Que alegria rever o mar pequeno, o morro do Espia, o preguiçoso rio Ribeira de Iguape, as ruas de pedras irregulares, os casarios coloniais. Até as pessoas  dali pareciam as mesmas de sempre.
Porém ele deixando a cidade ainda cedo, não teve talvez a oportunidade de receber um pouco daquela imunidade contra a  rápida passagem do tempo! A neve tomara seus cabelos e usava  uma bengala como arrimo.
Caminhou até a rua principal e parou próximo à  porta de um antigo casarão onde nascera e vivera  a infância e adolescência. Ali permaneceu um bom tempo, examinando o passado.

E foi por uma daquelas enormes janelas, quando ainda era menino, que viu passar pela primeira vez aquele anjo, a musa perfeita, a flor que nenhuma primavera seria capaz de traduzir. Sorriu para ela e arquitetou um mundo. Passou a cortejá-la em pensamento e sua  alma de poeta menino adoeceu. Quando na rua ela passava, o menino largava a brincadeira e ficava estático observando-a. Depois corria  para casa e rabiscava um poema.
Coisa de menino, naquela tarde ficou atocaiado entre a porta e a janela esperando ela  passar. E ela passou. Voltava do colégio, vestida de azul e branco a linda normalista. Aí, a alma do menino quase se desprendeu daquele corpo frágil e trêmulo. Deixou que ela ganhasse certa distancia e timidamente a seguiu. No bolso levava um poema e no peito um coração dilatado de ansiedade e paixão. 
Alguns passos e antes que ele a abordasse, foi como se de repente uma tormenta caísse deixando o seu coração à deriva. Aquele anjo, musa perfeita, flor rara, já pertencia a outro alguém.
Transtornado, mesmo assim não pestanejou em rasgar o poema ali mesmo. Rasgara com gosto e ódio, tanto, que se pudesse rasgaria a própria existência.
Naquelas ruas quase desertas somente o céu deu testemunha de que o poema   agonizara por horas rolando pelo chão como folhas de outono.

Agora, ali estava ele, homem feito e já erodido pelo tempo. Caminhou lentamente pela rua do Funil até a margem do  rio Ribeira. Lá solenemente abriu um pacote  onde havia uma garrafa, e dentro dela um poema.
Não muito longe dali, o estuário, o destino do rio. Lá, o mar ansioso o esperava de braços abertos. Vargas olhou demoradamente  para a garrafa, despedindo-se dela, e  num gesto  quase bruto lançou-a no rio dizendo:
__ Vá! Vá! Vá!..

A cortiça justa a mantinha hermética e seguiu flutuando a meio corpo levando em seu bojo  um sonho desfeito.....
Logo a perdeu de vista, pois o rio engalanado pela ardentia daquela linda tarde ficara como se milhões de garrafas flutuando, brilhassem tangidas pelo sol.
Finalmente o Nautilus de cristal ganhara o mar. Nauseante, resvalou  num casco moribundo, depois, num arrecife arredio. Algumas gaivotas curiosas a cortejaram além da  arrebentação, pra depois deixá-la só naquele infinito mar, pois  a noite já  abrira as negras asas e uma procela se levantava  à sua retaguarda. Pávido, prosseguia.

Vargas por sua vez, sentiu que  já era tempo de ir embora. Olhou pela ultima vez toda aquela imensidão e caminhou suspirando desaparecendo lentamente  pelas acanhadas ruelas da cidade.
Algumas pessoas comentavam:__ O que fazia  aquele homem ali desde aquela hora?

Após a borrasca o céu se abriu novamente e o cruzeiro do sul sorrindo, parecia apontar para a garrafa o caminho a seguir.
Por sorte, livrou-se das correntes em círculos e daqueles demônios que arremessam mortais vagalhões contra os rochedos.
Depois veio brisa afagando as cristas espumantes e quase tudo parecia adormecer. Quando a ultima alva se esvaia no céu, viu-se sobre longo tapete de algas à flor da inconstância do mar, até que de súbito arremessada foi sobre escombros numa praia de musgos, e lá permaneceu por muitos anos.
 Numa certa manhã por  ali brincava uma criança alada e nua, portando um arco e flechas, que encontrando a garrafa, recolheu-a e curioso decifrou aqueles hieróglifos de amor poético..

Na verdade, a garrafa continha um poema de um antigo escritor Cabo-Verdeano chamado: Manuel Lopes.1907/2005


A Garrafa:


Que importa o caminho
da garrafa que atirei ao mar?
Que importa o gesto que a colheu?
Que importa a mão que a tocou
__ se foi criança
ou o ladrão
ou o filósofo
quem libertou a sua mensagem
e a leu para si e para os outros.

Que se destrua contra os recifes
ou role no areal infindável
ou volte às minhas mãos
na mesma praia erma donde a lancei
ou jamais seja vista por olhos humanos,
Que importa?
...se só de atirá-la às ondas vagabundas
libertei meu destino da sua prisão?..

(poema de Manuel Lopes)


Obs: Só para constar. Esse texto, eu escrevi  como um poema em 2006. Em 2014 resolvi transformá-lo em uma prosa (ou conto?) Somente agora, encontrei esse  poema antigo de  Manuel Lopes que fala sobre o mesmo assunto e até sobre o caminho da garrafa que continha um poema... 




Conto de José Alberto Lopes - 11/09/2014














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