Praia de musgos
Quando Vargas
desceu no largo da igreja de Bom Jesus e respirou uma cidade ainda pouco mudada
em mais de quarenta anos, sentiu-se novamente em casa. Que alegria rever o mar
pequeno, o morro do Espia, o preguiçoso rio Ribeira de Iguape, as ruas de
pedras irregulares, os casarios coloniais. Até as pessoas dali pareciam as mesmas de sempre.
Porém ele
deixando a cidade ainda cedo, não teve talvez a oportunidade de receber um
pouco daquela imunidade contra a rápida
passagem do tempo! A neve tomara seus cabelos e usava uma bengala como arrimo.
Caminhou até a
rua principal e parou próximo à porta
de um antigo casarão onde nascera e vivera
a infância e adolescência. Ali permaneceu um bom tempo, examinando o
passado.
E foi por uma
daquelas enormes janelas, quando ainda era menino, que viu passar pela primeira
vez aquele anjo, a musa perfeita, a flor que nenhuma primavera seria capaz de
traduzir. Sorriu para ela e arquitetou um mundo. Passou a cortejá-la em
pensamento e sua alma de poeta menino
adoeceu. Quando na rua ela passava, o menino largava a brincadeira e ficava
estático observando-a. Depois corria
para casa e rabiscava um poema.
Coisa de
menino, naquela tarde ficou atocaiado entre a porta e a janela esperando
ela passar. E ela passou. Voltava do
colégio, vestida de azul e branco a linda normalista. Aí, a alma do menino
quase se desprendeu daquele corpo frágil e trêmulo. Deixou que ela ganhasse
certa distancia e timidamente a seguiu. No bolso levava um poema e no peito um
coração dilatado de ansiedade e paixão.
Alguns passos
e antes que ele a abordasse, foi como se de repente uma tormenta caísse
deixando o seu coração à deriva. Aquele anjo, musa perfeita, flor rara, já
pertencia a outro alguém.
Transtornado,
mesmo assim não pestanejou em rasgar o poema ali mesmo. Rasgara com gosto e
ódio, tanto, que se pudesse rasgaria a própria existência.
Naquelas ruas
quase desertas somente o céu deu testemunha de que o poema agonizara por horas rolando pelo chão como
folhas de outono.
Agora, ali
estava ele, homem feito e já erodido pelo tempo. Caminhou lentamente pela rua
do Funil até a margem do rio Ribeira.
Lá solenemente abriu um pacote onde
havia uma garrafa, e dentro dela um poema.
Não muito
longe dali, o estuário, o destino do rio. Lá, o mar ansioso o esperava de
braços abertos. Vargas olhou demoradamente
para a garrafa, despedindo-se dela, e
num gesto quase bruto lançou-a
no rio dizendo:
__ Vá! Vá! Vá!..
A cortiça
justa a mantinha hermética e seguiu flutuando a meio corpo levando em seu
bojo um sonho desfeito.....
Logo a perdeu
de vista, pois o rio engalanado pela ardentia daquela linda tarde ficara como
se milhões de garrafas flutuando, brilhassem tangidas pelo sol.
Finalmente o
Nautilus de cristal ganhara o mar. Nauseante, resvalou num casco moribundo, depois, num arrecife
arredio. Algumas gaivotas curiosas a cortejaram além da arrebentação, pra depois deixá-la só naquele
infinito mar, pois a noite já abrira as negras asas e uma procela se
levantava à sua retaguarda. Pávido, prosseguia.
Vargas por sua
vez, sentiu que já era tempo de ir
embora. Olhou pela ultima vez toda aquela imensidão e caminhou suspirando
desaparecendo lentamente pelas
acanhadas ruelas da cidade.
Algumas
pessoas comentavam:__ O que fazia
aquele homem ali desde aquela hora?
Após a
borrasca o céu se abriu novamente e o cruzeiro do sul sorrindo, parecia apontar
para a garrafa o caminho a seguir.
Por sorte,
livrou-se das correntes em círculos e daqueles demônios que arremessam mortais
vagalhões contra os rochedos.
Depois veio
brisa afagando as cristas espumantes e quase tudo parecia adormecer. Quando a
ultima alva se esvaia no céu, viu-se sobre longo tapete de algas à flor da
inconstância do mar, até que de súbito arremessada foi sobre escombros numa
praia de musgos, e lá permaneceu por muitos anos.
Numa certa manhã por ali brincava uma criança alada e nua,
portando um arco e flechas, que encontrando a garrafa, recolheu-a e curioso
decifrou aqueles hieróglifos de amor poético..
Na verdade, a
garrafa continha um poema de um antigo escritor Cabo-Verdeano chamado: Manuel
Lopes.1907/2005
A Garrafa:
Que importa o
caminho
da garrafa que
atirei ao mar?
Que importa o
gesto que a colheu?
Que importa a
mão que a tocou
__ se foi
criança
ou o ladrão
ou o filósofo
quem libertou
a sua mensagem
e a leu para
si e para os outros.
Que se destrua
contra os recifes
ou role no
areal infindável
ou volte às
minhas mãos
na mesma praia
erma donde a lancei
ou jamais seja
vista por olhos humanos,
Que importa?
...se só de
atirá-la às ondas vagabundas
libertei meu
destino da sua prisão?..
(poema de Manuel Lopes)
Obs: Só para constar. Esse texto, eu escrevi como um poema em 2006. Em 2014 resolvi transformá-lo em uma prosa (ou conto?) Somente agora, encontrei esse poema antigo de Manuel Lopes que fala sobre o mesmo assunto e até sobre o caminho da garrafa que continha um poema...
Conto de José Alberto Lopes - 11/09/2014
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