No tempo dos
Bondes.
[Uma Crônica]
Uma parede esborcinada de
uma antiga fábrica de acordeões era a paisagem permitida pela única janela do seu quarto de pensão.
A cama era estreita e cheirava a mofo, mas a comida era muito boa e as diárias eram
módicas.
Quando chovia essa parede mais parecia uma grande tela surrealista. À
noite, era como se olhasse para uma nesga de céu onde o criador se esquecera de
colocar estrelas.
Depois de seis dias sobre uma
velha Remington e montanha de papéis, resolveu ele que no sétimo dia
descansaria. Passear um pouco pela metrópole ajudaria a desopilar a cabeça e o
corpo, pensou ele. E assim o fez.
Na manhã seguinte olhando por cima do pesado óculos, cumprimentou a
dona do recinto e saiu. Não era a mesma
cidade de quarenta anos atrás, quando então se mudara para Curitiba. Caminhou
minutos a fio numa espécie de transe,
mesmo com toda aquela aflição de uma cidade grande. Depois, ficou arredio como
um cão perdido!
Parou no cruzamento de uma grande avenida que conhecera ainda acanhada.
Ficou estático enquanto um filme em branco e preto rolava na tela de sua mente. Um pedaço da história
paulistana deslizando sobre trilhos polidos que sulcaram em tempos idos aquela
mesma avenida.
Por ali corriam os bondes levando e trazendo proletários sobre o chamado
trilhos do progresso. A história de um
tempo em que os homens ainda usavam chapéu e a névoa vezeira da tardinha
dava à cidade um ar bucólico.
A história das fábricas com suas chaminés de tijolinhos vermelhos em
cujos topos tremulavam diuturnamente longos penachos azuis, brancos ou negros.
Seus funcionários, homens e mulheres, rendidos pelas sirenes uníssonas,
se espalhavam em ruidosas e apressadas
procissões. Ali, os bondes, energia limpa e baixo ruído iam e vinham
apinhados e capitaneados por seus motorneiros devidamente e impecavelmente
trajados, além de sempre solícitos.
O atrito das rodas sobre o aço e o (vrummmm) do gerador, acompanhavam as
conversas e os risos dos passageiros.
Lentamente passavam as fachadas dos magazines, as luzes policrômicas dos
néons pulsando freneticamente seus reclames. Os bilhares enfumaçados, gente
indo, gente voltando...As cantinas típicas animadas por barítonos amadores.
Casarões ricos, bem iluminados e cercados por verdadeiras muralhas com seus
imensos portões de ferro-fundido. Jardins; cortiços; tinturarias; farmácias;
confeitarias; as ruas calçadas com paralelepípedos polidos; além dos gasômetros que subiam e desciam suas tampas parecendo imensas panelas escuras................
O sinal fechou e abriu umas
três vezes, até que de súbito ele fez um gesto involuntário como se estivesse
saltando do estribo dum bonde em movimento.. Depois, finalmente atravessou a
grande avenida, literalmente conduzido por uma multidão apressada e
indiferente!
De JAL.- 2021
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